terça-feira, julho 12, 2011

dark room

"Tinha trinta e cinco anos e, logo adiante, uma porta para o desconhecido. De péssimo gosto colocarem um espelho logo aí, balbuciou ao girar, trêmula, a maçaneta, e dar com a escuridão completa de um quarto povoado a princípio apenas por uma sonoridade nova, que parecia convidá-la ao próximo passo. Longos suspiros, gemidos breves e demorados, soluços incontidos, nenhuma palavra clara, humana, nem vozes detectáveis. E vultos movendo-se na cadência de ruídos sabáticos, como demônios em festa. Antes de fechar por completo a porta atrás de si, um último pensamento a atravessou: Faço por meu filho! Depois, mais nenhum. E, uma vez fechada a porta, a primeira mão a conduziu. Em seguida, outras se juntaram àquela: mãos ousadas, encharcadas de muitos gozos, impregnadas de muitas peles, firmes, decididas, porém gentis (os demônios eram civilizados!). E ela foi. Foi tragada pelo escuro. Tocou, lânguida, esse escuro, e deixou-se tocar por ele sem oferecer resistência, até a fluidez absoluta dos sentidos, até não poder distinguir-se dos demais suspiros, gemidos e soluços.

Horas depois (talvez horas, não sabia nem queria saber), exausta, abandonou o quarto (sem se voltar para o espelho da porta), atravessou o corredor vermelho e desceu as escadas até atingir a recepção. Mesmo percorrendo-o esgotada, o caminho de volta pareceu-lhe infinitamente mais curto. Foi até à chapelaria, pediu a bolsa e o casaco (retidos pela moça loura que naquele momento podia ver no bar fumando com dois travestis) à funcionária, pagou o que lhe foi dito que devia, e só ao atingir outra vez a calçada constatou a importância do que acontecera naquele lugar. Quem saía dali já não era Júlia Capovilla, mas a sacerdotisa fertilizada, a Rainha do Sabbat.

E se os anjos e santos das escrituras não passassem de demônios gentis? Haveria, afinal, maior virtude que a da entrega e da posso consumadas em total anonimato? Algo mais santo que se abster dos vínculos com a matéria vista? Fraternidade mais completa?

Júlia respirou o ar daquela noite tão satisfeita. Vagueou por ruas desconhecidas, o corpo pesando-lhe menos. E a madrugada pareceu-lhe manhã de tão clara e insuspeita. Ela, que tantas vezes abominara o contato humano, e em outras tantas repudiara o estranho, de repente sentiu-se capaz de lavar os pés imundos da mendiga e compreender os criminosos, errar livre como os bêbados, dar o corpo em troca como as putas.

Fecundada por matérias inomináveis, carnes incógnitas, fez-se toda generosidade e desapego. A menina-sacerdotisa germinava, brotava agora sem ater-se a nenhum limite ou vínculo."




Manoela Sawitzki, Suíte Dama da Noite
Ed. Cotovia, colecção Sabiá




(no escuro, como as carraças.)

3 comentários:

Anónimo disse...

Palavra,comecei a ler e estava a pensar como tinha tanto a ver com o teu post anterior. Qd acabei vi o teu comentário...:-)

bj

Anónimo disse...

"Como o instinto varia no porco que chafurda
Comparado, oh elefante semipensante, com o teu!
Mistura isso e pensa, que linda barreira,
Eternamente separados em no entanto sempre próximos!
Quão aliadas a recordação e a imagem que a reflecte!
Que finas divisórias separam o sentir do pensar!"
Alexander Pope, Essay on Man

natalie disse...

:)

uma coisa é sempre essa coisa e o seu contrário. alguém deve ter dito isto e eu concordo :)