terça-feira, abril 30, 2013

terça-feira, abril 23, 2013

um buraco no chão

às vezes é bom simplesmente receber.
sem juízos, sem sentir que devemos alguma coisa a quem oferece (e se oferece)

receber um ensinamento, um toque, um pedido, um agradecimento
ou apenas receber um pensamento ou uma memória
que aparece, como um objecto estranho, no meio do nada.

ontem recebi uma aula de yoga, quando o costume é que a dê.
(e aqui aplica-se mesmo os verbos dar e receber, porque quem dá não é pago, é uma partilha, uma dádiva.)

recebi cada palavra, movimento, respiração, som, olhar, cada convite a estar no presente, cada espaço, cada pessoa no grupo.

e uma memória estranha, no meio do nada, enquanto me curvava, cabeça a tocar o chão, na "postura da criança".

lembrei-me de um buraco no chão.
um buraco no soalho num canto da cozinha da casa da minha avó. esse buraco, que desconheço se foi feito de propósito, servia, entre outras coisas, para passar extensões com lâmpadas, para o armazém e lagar na parte de baixo. também servia para comunicar aos que estavam lá em baixo, por exemplo, que a sopa estava na mesa, ou que tinham de vir ao telefone, ou outra coisa qualquer.
não me lembrei só do buraco em si. lembrei-me da textura e irregularidades da madeira nas minhas mãos, do cheiro da madeira e do cheiro que vinha lá de baixo, do que víamos e ouvíamos, quando, cá em cima, espreitávamos lá para baixo: normalmente uma luz fraca a iluminar os homens e o lagar cheio de vinho, as vozes, ora distantes, ora mais fortes, os risos, as discussões.

acho que esse buraco já não existe.
mas apareceu aqui, na minha memória, numa fracção de segundo, enquanto a minha cabeça tocava no chão, e me enroscava sobre mim, sobre o mundo, tão perto do chão como uma pequena semente, tão unida como um embrião, quando todo o corpo comunicava e pensava, sem separação.

um buraco no chão para me lembrar que tudo comunica e pensa, sem separação.


domingo, abril 21, 2013

nº 25

Irving Penn 
 Nude No. 25, 1949-1950

quinta-feira, abril 18, 2013

tempos sombrios


As sombras de Gray

Carlos Fiolhais


"Não, não venho falar da senhora E.L. James (seria Grey e não Gray) nem do autor de Os homens são de Marte, as mulheres de Vénus” (um escritor de auto-ajuda que é Gray), mas sim de John Gray, escritor e professor de Pensamento Europeu da London School of Economics que tem expresso em vários livros a sua visão muito sombria da natureza humana.

Lembrei-me dele agora que, no ecrã de televisão à minha frente, desfilam imagens repetidas até à exaustão dos atentados bombistas de Boston. Foi Gray que, no seu livro Sobre Humanos e Outros Animais (Lua de Papel, 2007), enfatizou que somos animais como quaisquer outros. E que a moderna crença no humanismo não passa de uma auto-ilusão. Estou em total desacordo com ele, enfileirando naqueles que acreditam no ideal iluminista do progresso fundado nos valores da razão, da democracia, da liberdade e da tolerância, que nos trouxe qualidade de vida, mas a violência absurda de actos como o que acaba de causar em Boston três mortos e centenas de feridos, não pode deixar de nos perturbar e de nos fazer pensar se a natureza humana tem conhecido progressos desde os tempos do Gulag, ou do Holocausto, ou dos anarquistas do Séc. XIX, ou dos cadafalsos setecentistas, ou ainda das carnificinas medievais. Há onze anos aviões civis foram desviados para chocar inopinadamente contra edifícios repletos de pessoas inocentes, hoje são colocadas bombas para explodir com surpresa num evento desportivo muito popular. Porque é o animal humano tão desumano como outros animais?

John Gray cita Fernando Pessoa, ou melhor Bernardo Soares, o autor do Livro do Desassossego para nos dizer que o homem é simplesmente como é e não como nós desejávamos que ele fosse: “Se considero com atenção a vida que os homens vivem, nada encontro nela que a diferencie da vida que vivem os animais. Uns e outros são lançados inconscientemente através das coisas e do mundo; uns e outros se entretêm com intervalos; uns e outros percorrem diariamente o mesmo percurso orgânico; uns e outros não pensam para além do que pensam, nem vivem para além do que vivem. O gato espoja-se ao Sol e dorme ali. O homem espoja-se à vida, com todas as suas complexidades, e dorme ali. Nem um nem outro se liberta da lei fatal de ser como é.” Para Gray, a modernidade, com todo o seu património de valores e meios, não nos deve enganar, já que o homem é um animal essencialmente destruidor, no qual não se pode depositar grandes esperanças. Se é capaz do melhor, também o é do pior. Será, por vezes, mais tigre do que gato. Na lógica do seu pensamento, não espanta que uma pessoa de posse de alguma tecnologia caseira de explosivos a use hoje de um modo trágico e que, amanhã, um país detentor de tecnologia nuclear a venha a usar para espalhar o terror.

A tese de Gray acaba de ser abonada por um novo livro seu, ainda não traduzido entre nós, intitulado The Silence of Animals e subintitulado On progresso and other modern myths (Allen Lane, 2013). Aí diz que tanto a ciência como a religião, que pensam que o animal humano pode ultrapassar os seus constrangimentos naturais, perseguem utopias inatingíveis. Creio que Gray não tem razão. De facto, os cientistas acreditam no progresso científico e numa vida mais confortável baseado nele, mas não há como negar que tanto um como outra tenham sido em geral alcançadas. Por sua vez, as pessoas religiosas (que podem também ser cientistas) acreditam na melhoria espiritual, mas não se pode dizer que muitas não tenham conseguido. Ambos acreditam, embora de formas diferentes, na singularidade humana. Para Darwin, o amor por todas as criaturas vivas era o atributo mais nobre que distinguia o homem, o que lembra S. Francisco de Assis. Para o filósofo suíço Max Picard, católico, a necessidade de recolhimento em silêncio, como acontece por estes dias em Boston e no mundo, era uma marca da superioridade do homem relativamente a outros animais: “O silêncio dos animais é diferente do silêncio dos homens”. Gray, embora concordando que existe a referida diferença, vê-a de um outro modo: “Os homens procuram silêncio porque buscam a redenção de si próprios, os outros animais vivem em silêncio porque não precisam de redenção.” Para ele, “pode haver um sentido em que os outros animais são pobres, mas essa pobreza é um ideal que os humanos nunca alcançarão.” E, no fim, escreve, num pessimismo radical: “Não há redenção no ser humano. Mas também não é preciso nenhuma redenção.”

Vivemos tempos sombrios. É útil ler um pensador destes tempos, um céptico da humanidade, porque temos de nos confrontar com a escuridão. Mas, recusando o niilismo de Gray, é sobretudo nas épocas mais escuras que o nosso impulso para a claridade deve ser maior. Pode não haver redenção, mas é humano procurá-la."


in Público, 18-4-2013

danos colaterais


Walker Evans

sábado, abril 13, 2013















(quem estará contigo quando a alma escurece?

de onde a luz?

seguras-te a que certeza?

de onde a força?





treinas a queda e a solidão todos os dias e ainda assim estás longe de saber
por onde cair, agarrem-te ou não.)














sexta-feira, abril 05, 2013

um homem


anda aqui um homem

anda aqui um homem a fazer uma vida toda a vida e a vida que um homem faz é outra coisa sempre outra coisa e às vezes nem vida nem nada só um andar por cá a por pés à frente de outros pés e palavras à frente disto e disto e disto ainda um homem é fraca e constante coisa um homem é o que se vai arranjando um homem é daqui para o chão e olhos virados ao céu ou ao amor que é um céu de quem é triste quem me apanha o que trago pesado quem me acha no meio disto agora a noite e um silêncio grande de nem pensar nem a dor agora nem dedos à procura de mãos soltas as mãos vão por elas putas de só sentir como nervo descarnado entrando por um abrigo e com isto perdi-me e já não sei e o amor sei lá eu não me fodam com isso o amor é salvar quem não precisa de salvação

ponto

final

Nuno Camarneiro
Acordar um dia

quinta-feira, abril 04, 2013