segunda-feira, outubro 31, 2011

escuro


Turner





(por mais que isto esteja entranhado no meu corpo, por mais que já as espere, ciclicamente, esta solidão e tristeza que entram por todas as portas, tantas vezes sem sentido, sem razão aparente, ainda custa habituar-me; sei que o melhor é deixá-las entrar, convidá-las a tomar um chá e esperar que saiam, amavelmente e me deixem em paz por algum tempo. mas enquanto não se vão embora, o tempo estará escuro na minha alma.)

sexta-feira, outubro 28, 2011

deixar ir



Esta noite tive um sonho estranho. Como todos os sonhos são, se calhar.
Eu era pequena, apesar do corpo não ser o de uma criança. E havia uma espécie de jogo de escondidas, ou de caça ao tesouro. Uma pessoa que parecia ser a minha mãe, dizia-nos (havia outras crianças, mas não me lembro bem) que tínhamos de encontrar um bebé. Eu estive um pouco perdida e parada no jogo, até que vi uma porta e quando a abri encontrei umas escadas de madeira. Sentei-me nas escadas e fechei a porta. Comecei a subir e encontrei o que parecia ser um bebé. Era uma mistura de bebé com boneco de criança e era tão pequeno que cabia na minha mão. Olhei para aquela criatura estranha e frágil na minha mão aberta. Tentei, com a outra mão, tocar-lhe, ver se estava vivo, se mexia, se estava quente. A criatura mexeu-se e eu, com cuidado, protegia-o, não sei bem de quê.
Como não sabia o que fazer, fui ter com aquela que se parecia com a minha mãe. Mostrei-lhe o bebé/boneco, disse-lhe "encontrei o bebé". Ela olhou com estranheza, mexeu-lhe levemente e disse "este não é o bebé que eu pedi". Olhou e mexeu-lhe um pouco mais e continuou "ele está mal, tem de ir para o hospital."
Nesse momento, o bebé/ boneco já se parecia mais com um bebé verdadeiro e eu já não era uma criança (e nem tenho a certeza se "eu" era mesmo eu). "Eu" agarrava no bebé e dizia "mas se ele for para o hospital nunca mais o vejo". E aquela que se parecia com a minha mãe, e que agora se parecia mais com uma médica, dizia "mas o bebé não é teu, tens de o deixar ir." E "eu" pensava "mas eu quero cuidar dele", enquanto via o bebé ser levado. Ao mesmo tempo eu conseguia ver-me a mim e ver o outro "eu" que via o bebé ser levado. E eu, no sonho ou já meia acordada pensei "coitada, deve ser difícil deixar ir o bebé."
Foi então que acordei.




(queria colocar aqui a fotografia de um barquinho de papel que vemos afastar-se, frágil, a fazer o seu caminho, mas que temos de deixar ir. mas não encontrei nenhuma fotografia interessante. imaginem.)

quinta-feira, outubro 27, 2011

sem destino


Adelino Lyon de Castro

segunda-feira, outubro 24, 2011

outono


Paisagem de Outono
Van Gogh



(hoje, entre a chuva e o trânsito da cidade, de repente, um cheiro a outono, urze, rosmaninho e pinheiro; e saudades da serra. há quem não passe sem estar perto do mar, eu preciso, de tempos a tempos, de sentir uma montanha. )

domingo, outubro 23, 2011

sexta-feira, outubro 21, 2011

Ó tu



"Ó tu, a quem me dirijo muitas vezes em silêncio, para poder estar contigo,

Enquanto caminho a teu lado ou me sento perto, ou fico na mesma sala que tu,

Não imaginas o fogo eléctrico e subtil que brinca dentro de mim por tua causa."



Walt Whitman


(frase muito bonita, roubada daqui)

quarta-feira, outubro 19, 2011

tramp

and now for something completly different


corpo: calcanhares


Os do homem

Ele caminhava à minha frente no pequeno corredor da casa. Trazia umas sandálias de borracha, calças e camisa largas. As pernas magras, o andar leve, como o de um bailarino. Olhei instintivamente para o calcanhar que se mostrava livre, com a tira da sandália a rodeá-lo. Depois para o pescoço, vermelho. Os cabelos já brancos. A pele quase transparente. As mãos longas, lentas e esvoaçantes, a fazerem lembrar as asas de um pássaro. Mas os calcanhares. Pousavam no chão como se não lhe pertencessem. Consegui, só por vê-los, imaginar todo o pé, a curvatura suave, os dedos seguros e leves a tocar no chão, a vontade de voar, a vertigem de cair.

Contou-me, mais tarde, que em criança, se perdia nas estrelas e se imaginava lá longe, onde elas se encontram, como se, ao fechar os olhos, pudesse perder a gravidade e mergulhar naquele útero imenso, voltar à origem.


Os da mulher

A rapariga cozinhava, misturava ingredientes, cortava vegetais, o sal a sair-lhe solto dos dedos, as especiarias na palma da mão, o molho provado na colher de pau, o fumo dos tachos a envolve-la. Tinha uma saia étnica, comprida, t-shirt de alças, uma tatuagem num dos lados do pescoço, o cabelo preto apanhado de forma negligente com uma mola. Uma música oriental ondulava na cozinha. Olhei instintivamente para os pés dela. Estava descalça e num dos tornozelos uma pulseira com guizos. Os pés seguros no chão, os dedos abertos, como garras. Mas os calcanhares. Presentes, fortes, um pouco calejados, levantavam-se milimétricamente do chão a cada movimento, como se quisessem enraizar na terra e fazer de todo o corpo dela uma árvore.

Mais tarde, no campo, ela deitada no chão, o sol a queimar-lhe a cara, ela a misturar-se com a terra, a oferecer-se como semente, amante, a mergulhar naquele útero imenso, para voltar à origem.


sábado, outubro 15, 2011

and i found home








"She came to take me home and I found home.
It happened once.
Once and therefore forever.
(...)

The amazement about the two of us,
amazement about man and woman
has turned me into a human being.

I know now what no angel knows."


Asas do Desejo, Wim Wenders

nocturno

terça-feira, outubro 11, 2011

guardo




(como num cofre que se não pode fechar de cheio)


guardo
no corpo, no corpo
os instantes subtis

o veludo do café
os olhos dos gatos
o vermelho das rosas
o som do mar
o interior de um figo
o movimento da gente que passa
a praia deserta
o silêncio das minhas mãos

abertas
para ti.

(Agosto, 2011)

quarta-feira, outubro 05, 2011

andorinhas




(disseram-me hoje que algumas amizades são como as andorinhas, indo e vindo, cruzando mares e montanhas, unindo e separando, sempre no tempo certo.)

segunda-feira, outubro 03, 2011

o salto


Sonhei que acordava num sábado de Inverno. Tu não estavas na cama e por um segundo pensei que te tinha perdido. Mas segui o teu cheiro e encontrei-te no sofá, enrolada num cobertor a olhar para a televisão. Chamaste-me “anda ver” e eu deitei-me ao teu lado. Estava frio, encostei-me a ti e no ecrã vi passar toda a nossa vida. Rimos juntos, abracei-te com força e tu choraste.

Mas não foi isso que aconteceu. Quando acordei não estavas ao meu lado na cama, nem enrolada no sofá e no ecrã não passava a nossa vida. Como em todas as manhãs, corri para as janelas, confirmei que estavam fechadas.

Saí para a rua ainda em pijama, o kispo vestido à pressa e as botas por apertar. Meti-me no carro, e chovia e eu não via nada à minha frente, mas tinha de te encontrar, como te encontrava sempre. Corri toda a cidade, todos os sítios onde costumavas estar em manhãs assim.

Mas tu eras um nome numa pedra. E ao meu lado só havia mulheres velhas vestidas de preto, flores, cheiro a cera queimada, ladainhas e ocasionalmente um choro ao longe.

Devo ter ficado muito tempo a olhar para a pedra com o teu nome, a tentar chorar, a tentar perceber o que te tinha acontecido porque já era quase noite quando uma das mulheres de preto me veio chamar “vão fechar”.

Tu não podias ser aquela pedra com o teu nome.

Não compreendo. Não choro porque não compreendo. As janelas estavam fechadas. Na noite anterior fizemos amor e parecias feliz. Não me deixaram ver-te. Como podes ser um nome numa pedra, se nunca me deixaram ver-te?

Prometi-te que te salvava, que te salvaria sempre das manhãs de Inverno.

As janelas estavam sempre fechadas.

“Foi só o tempo de ir lá dentro”, disse a vizinha, e correste para a janela aberta.

Tenho o teu cheiro nas minhas mãos, sinto-te no meu corpo, ouço os teus passos e a tua voz doce e triste. A voz que um dia me disse “procura outra mulher quando eu morrer”. Eu abracei-te, a fugir dos teus olhos fundos e disse “não vais morrer”.

Agora sei que todas as mulheres morreram para mim naquela manhã.
Não choro. Procuro-te numa pedra. E as janelas continuam fechadas.



sábado, outubro 01, 2011

para tudo há um tempo

1 Para tudo há um momento e um tempo para cada coisa
que se deseja debaixo do céu:

2 tempo para nascer e tempo para morrer,
tempo para plantar e tempo para arrancar o que se plantou,

3 tempo para matar e tempo para curar,
tempo para destruir e tempo para edificar,

4  tempo para chorar e tempo para rir,
tempo para se lamentar e tempo para dançar,

5 tempo para atirar pedras e tempo para as juntar,
tempo para abraçar e tempo para evitar o abraço,

6  tempo para procurar e tempo para perder,
tempo para guardar e tempo para atirar fora,

7 tempo para rasgar e tempo para coser,
tempo para calar e tempo para falar,

8  tempo para amar e tempo para odiar,
tempo para guerra e tempo para paz.

(...)

Eclesiastes, 3