quarta-feira, junho 08, 2011

notas soltas sobre material, ficção, memórias, livros

1.
Eu lia um grande livro e foi por isso que ele me convidou para tomar café na mesa dele. Ele também lia um grande livro, embora o meu, como constatei mais tarde, fosse uma pequena fraude, e o dele um daqueles importantes, de um autor de referência. A conversa foi interessante e fluiu facilmente. As minhas duas profissões despertam sempre curiosidade, embora goste mais de falar sobre aquela que não me paga a renda da casa, ou seja o teatro, a criação artística. Perante o inusitado da situação (para mim não é nada, nada habitual conhecer pessoas desta maneira, mas acredito que eu seja uma excepção em muitas coisas) e ao falar sobre processos de criação, dei por mim a dizer que provavelmente aquela situação e aquela conversa que estava a ser vivida, ficaria gravada na minha memória e iria certamente servir como material para a criação.

2.
Tudo é material. Tudo o que sinto, percepciono, vejo, penso, leio, vivo, reflicto é material. As memórias são material, o que está a acontecer no momento em que se cria é material, a própria performance é material, que  será usado  para melhorá-la, ou para que surjam outras ideias. Gosto da palavra inglesa "stuff" para definir este "material", porque parece que tudo cabe dentro, como se fosse uma espécie de caixa onde se formam puzzles, ligações, (in)coerências. Este blog também é material e ao mesmo tempo uma caixa para guardar material e por vezes pode ser campo de (humilde) exposição de coisas criadas.

3.
A memória é um material engraçado. Por vezes acho piada misturá-la com a imaginação.
Uma das coisas mais interessantes para quem trabalha com a acção dramática é deixar que a memória do vivido contamine a ficção criada. Não se trata tanto de convocar as memórias emocionais que se adequam à situação que se está a representar, mas antes, ao praticar as acções que o texto dramático indica, e colocando-nos no campo mágico do "como se", deixar que as nossas memórias, as nossas imagens, apareçam e se misturem com a realidade paralela que criamos. Quando isso acontece o mais comum é que o espectador nem se lembre do que ouviu o actor dizer, e que fique com imagens, sensações, emoções, porque o actor conseguiu que o público visse as mesmas imagens que ele, imagens que tocaram em memórias e vivências do espectador.

4.
Já escrevi aqui coisas que pareciam auto-biográficas e que são memórias inventadas, já escrevi coisas que realmente aconteceram mas colori-as para parecerem ficção, e já misturei acontecimentos verdadeiros com invenções.

5.
Desde criança que gosto de criar/ viver realidades paralelas.  Há uns anos atrás, depois de ter lido as "Noites Brancas" do Dostoievski, forcei-me a "acordar", tive medo que as ficções que criava para dar cor ao quotidiano, me afastassem das pessoas, da vida real. Na verdade nunca cheguei a correr totalmente esse risco, porque nunca levava a ficção até ao fim, nunca me desdobrei em personagens na vida real, nunca me senti atraída pela esquizofrenia. Mas forcei-me a não inventar histórias ideais, em que era a protagonista e que não passavam de um paliativo para um vidinha triste, em que nada acontecia, nem eu fazia acontecer.

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