quinta-feira, junho 30, 2011

espiral azul



Num líquido
Colchão atlântico
Adormeço,
E acordo com os odores
Do Ganges.
Numa espiral azul
A onda leva-me
A todos os lugares.

Ainda há sal na minha pele
Quando do barco alcanço
A margem.
O vendedor de incenso continua
Sentado na poeira do universo.


Idêntica à água
Regresso ao leito
Fresco e límpido
Do Atlântico.


Monte Gordo
Agosto - 2001

segunda-feira, junho 27, 2011

disagreement




"The Swiss playwright Friedrich Durrenmatt insisted that the theater begins with a disagreement between what one sees and what one hears. "If I go to the theater" he wrote, "and I close my eyes, and I understand what I am hearing, then it is not theater, it is a lecture. If I go to the theater and close my ears, and I understand what I am seeing, the it is not theater, it's a slide show. The theater begins with a disagreement between what you see and what you hear."

How many times have you gone to the theater and watched people rotate around a couch for two hours, illustrating what they say whith what they do? Compare this behavior with that of real life where people rarely do what they say. It is a rare moment when one person faces another and says: "I love you". Usually the words are uttered as someone is leaving the room looking at his watch. The difference between what is seen and what is heard expresses a basic truth about the relationship portrayed."


Anne Bogart & Tina Landau, "The viewpoints book"

quarta-feira, junho 22, 2011

segunda-feira, junho 20, 2011

Fingir

"Era só um abraço, um inocente abraço. Mas ele aninhou-se no seu colo e ela percebeu o que tinha de fazer. Apertou-o contra o seu peito, a mão direita a acariciar o cabelo, o queixo a tocar-lhe a cabeça, o outro braço a envolve-lo. Fecharam os olhos e respiraram juntos. Sentiram o calor dos corpos, o bater do coração e aninharam-se ainda mais um no outro. E naquele instante, ela fingiu ser a mãe que ele procurava e ele o filho que ela não esperava encontrar. Foi tudo a fingir, mas foi a mais pura verdade, uma verdade que cura."

sábado, junho 18, 2011

sexta-feira, junho 17, 2011

conhecer


René Magritte 
Os amantes


é sempre às cegas que nos atiramos para o outro,  que, mesmo quando pensamos conhecer, não conhecemos.
gostar/amar implica aceitar esse desconhecimento, o desvendar continuo de véus, de máscaras que colamos à pele.
aceitar as mudanças, as estações, a morte e o renascimento, a transformação, nossa e da outra pessoa.
ou como li há pouco tempo "ficar, quando todas as células nos dizem para fugir", ou seja, resistir às diferenças, ao pânico de nos sentirmos incluídos/presos no universo do outro, perceber e aceitar a dicotomia atracção/repulsa, prazer/dor.


terça-feira, junho 14, 2011

imigrada




Ramblas, Barcelona



Todos os anos sinto falta de Barcelona, onde só estive duas semanas, uma em 2006 e outra em 2010. Foram duas experiências completamente diferentes, se uma foi de reconhecimento e encantamento, a outra aproximou-me do quotidiano e da realidade. Mas ainda que tenha deixado de ver a cidade como uma Youkali imaginária, o sentimento de pertença e de liberdade permaneceu.
Sinto-lhe a falta, às vezes quase como se lá fosse a minha casa e eu estivesse aqui imigrada. Há um bocadinho de mim que pertence àquela cidade.


segunda-feira, junho 13, 2011

um pontinho

Enquanto ele falava ela olhava para um pontinho qualquer no espaço, atrás dele, dando a impressão que o olhava e escutava. Uma janela aberta, a esquina de uma telha, uma pessoa que passava, o brilho do sol nas folhas das árvores. De vez em quando olhava para ele e sorria, assentia com a cabeça, dizia "pois", "hum-hum", ria quando ele ria, ficava séria quando ele ficava sério. Por instantes tinha medo de ser apanhada na sua distracção e olhava para alguma coisa no corpo dele, um botão da camisa, a orelha esquerda, o pequeno corte que ficara na face depois de ter feito a barba. Olhou para os sapatos e imaginou os pés dele dentro do couro castanho, da meia de algodão do Egipto. Imaginou as unhas dele lá dentro e teve de evitar uma expressão de nojo. Quando é que tinha começado a ter nojo das unhas dos pés dele? Ou melhor, como é que tinha superado esse nojo, que agora voltava, para lhe lembrar qualquer coisa esquecida?

O brilho da aliança na mão dele chamou-lhe o olhar e, instantaneamente, tocou na sua própria aliança com o polegar, como se confirmasse "sim, está aqui." Olhou para ele e procurou de novo um ponto atrás, um escape, mas pressentiu o perigo de uma pergunta. Levantou-se, disse "desculpa, tenho de ir à casa de banho" e saiu.

Ele olhou para o relógio, tocou-lhe e sentiu o frio do metal. Bebeu mais um gole de uma bebida qualquer, encostou-se para trás. Viu-a passar entre as mesas da esplanada, tinha um vestido verde, justo e alguns homens olharam para ela. Estava bonita.
Houve uma noite, na montanha, a lua cheia, um sino ao longe, um cigarro partilhado, os barulhos da festa e o silêncio entre os dois. Ele disse-lhe "estás tão bonita", ela fingiu não ouvir, sorriu, disse-lhe "vamos dançar".
Há quanto tempo não lhe dizia que estava bonita? Há quanto tempo não iam dançar?

"Vamos?" disse ela, quando voltou da casa de banho. Ele levantou-se, acabou a bebida e pagou.

domingo, junho 12, 2011

quinta-feira, junho 09, 2011

quarta-feira, junho 08, 2011

notas soltas sobre material, ficção, memórias, livros

1.
Eu lia um grande livro e foi por isso que ele me convidou para tomar café na mesa dele. Ele também lia um grande livro, embora o meu, como constatei mais tarde, fosse uma pequena fraude, e o dele um daqueles importantes, de um autor de referência. A conversa foi interessante e fluiu facilmente. As minhas duas profissões despertam sempre curiosidade, embora goste mais de falar sobre aquela que não me paga a renda da casa, ou seja o teatro, a criação artística. Perante o inusitado da situação (para mim não é nada, nada habitual conhecer pessoas desta maneira, mas acredito que eu seja uma excepção em muitas coisas) e ao falar sobre processos de criação, dei por mim a dizer que provavelmente aquela situação e aquela conversa que estava a ser vivida, ficaria gravada na minha memória e iria certamente servir como material para a criação.

2.
Tudo é material. Tudo o que sinto, percepciono, vejo, penso, leio, vivo, reflicto é material. As memórias são material, o que está a acontecer no momento em que se cria é material, a própria performance é material, que  será usado  para melhorá-la, ou para que surjam outras ideias. Gosto da palavra inglesa "stuff" para definir este "material", porque parece que tudo cabe dentro, como se fosse uma espécie de caixa onde se formam puzzles, ligações, (in)coerências. Este blog também é material e ao mesmo tempo uma caixa para guardar material e por vezes pode ser campo de (humilde) exposição de coisas criadas.

3.
A memória é um material engraçado. Por vezes acho piada misturá-la com a imaginação.
Uma das coisas mais interessantes para quem trabalha com a acção dramática é deixar que a memória do vivido contamine a ficção criada. Não se trata tanto de convocar as memórias emocionais que se adequam à situação que se está a representar, mas antes, ao praticar as acções que o texto dramático indica, e colocando-nos no campo mágico do "como se", deixar que as nossas memórias, as nossas imagens, apareçam e se misturem com a realidade paralela que criamos. Quando isso acontece o mais comum é que o espectador nem se lembre do que ouviu o actor dizer, e que fique com imagens, sensações, emoções, porque o actor conseguiu que o público visse as mesmas imagens que ele, imagens que tocaram em memórias e vivências do espectador.

4.
Já escrevi aqui coisas que pareciam auto-biográficas e que são memórias inventadas, já escrevi coisas que realmente aconteceram mas colori-as para parecerem ficção, e já misturei acontecimentos verdadeiros com invenções.

5.
Desde criança que gosto de criar/ viver realidades paralelas.  Há uns anos atrás, depois de ter lido as "Noites Brancas" do Dostoievski, forcei-me a "acordar", tive medo que as ficções que criava para dar cor ao quotidiano, me afastassem das pessoas, da vida real. Na verdade nunca cheguei a correr totalmente esse risco, porque nunca levava a ficção até ao fim, nunca me desdobrei em personagens na vida real, nunca me senti atraída pela esquizofrenia. Mas forcei-me a não inventar histórias ideais, em que era a protagonista e que não passavam de um paliativo para um vidinha triste, em que nada acontecia, nem eu fazia acontecer.

sábado, junho 04, 2011

quarta-feira, junho 01, 2011

tempo de antena

Trabalho muito perto da delegação de um partido político e por isso necessariamente sou obrigada a conviver com a parafernália da campanha eleitoral. Há dias atrás, ao passar à frente do dito cujo local, estava estacionado um daqueles carros com altifalantes a vomitar promessas e cantigas foleiras. Uma senhora que ia à frente, ao ouvir dizer "mais apoios sociais para o concelho X"  olhou para trás, surpreendida, parecendo estar a pensar "como é possível fazerem promessas destas?" Cruzámos o olhar e não pude deixar de lhe sorrir, porque de certa forma parecia que tínhamos tido o mesmo pensamento. Foi o suficiente para ela abrandar o passo e vir a conversar comigo uma parte do caminho que fizemos juntas. Eu quase só ouvi.
Não estava revoltada, não disse que eram todos iguais, mas confirmou, de certa maneira, a surpresa que lhe vi na expressão quando ouviu as vozes da campanha com promessas irrealistas; falou de exploração, que até há trabalho mas se ganha muito pouco; que se consegue, com sacrifício, sobreviver, juntando "um bocadinho daqui, um bocadinho dali"; que se trabalha muito porque cada pessoa faz o trabalho de três; que veio de Cabo Verde há 10 anos e vive com a filha; que é difícil estudar quando se tem de trabalhar; que é preciso ter esperança.

Eu só ouvi.
Os políticos não ouvem as pessoas: falam com elas porque as querem convencer; e quando ouvem é para dar a volta e introduzir os seus argumentos, ou seja, manipular e doutrinar.
Talvez devessem ouvir mais as pessoas. Só ouvir. E depois pensar muito no que ouviram antes de fazer propostas que não têm em conta as pessoas e que insultam a sua inteligência.