domingo, outubro 08, 2006

passagem das horas

Trago dentro do meu coração
como num cofre que se não pode fechar de cheio,
todos os lugares onde estive,
todos os portos a que cheguei,
todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
ou de tombadilhos, sonhando.
e tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.

(...)

Não sei se a vida é pouco ou de mais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei
se me falta escrúpulo espiritual, ponto de apoio na inteligência,
consanguinidade com o mistério das coisas, choque
aos contactos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,
ou se há outra significação para isto mais cómoda e feliz.

Seja o que for, era melhor não ter nascido,
porque, de tão interessante que é a todos os momentos,
a vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger
a dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,
e ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos,
entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,
e tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,
com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ò vida.

(...)

Acenderam as luzes, cai a noite, a vida substitui-se.
Seja de que maneira for, é preciso continuar a viver.
Arde-me a alma como se fosse uma mão, fisicamente.
Estou no caminho de todos e esbarram comigo.
(...)

Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo,
mas tudo ou sobrou ou foi pouco - não sei qual - e eu sofri.
Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos,
e fiquei triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse.
Amei e odiei como toda a gente,
mas para toda a gente isso foi normal e instintivo,
e para mim foi sempre a excepção, o choque, a válvula, o espasmo.

(...)

Não sei sentir, não sei ser humano, conviver
de dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra,
não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser quotidiano, nítido,
ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens,
ter uma obra, uma força, uma vontade, uma horta,
uma razão para descansar, uma necessidade para me distrair,
uma coisa vinda directamente da natureza para mim.

(...)

Multipliquei-me, para me sentir
Para me sentir precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
despi-me, entreguei-me,
e há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.
(...)

Todos os amantes beijaram-se na minh'alma,
todos os vadios dormiram um momento em cima de mim,
todos os desprezados enconstaram-se um momento ao meu ombro,
atravessaram a rua, ao meu braço, todos os velhos e doentes,
e houve um segredo que me disseram todos os assassinos.
(...)

Viro todos os dias todas as esquinas de todas as ruas,
e sempre que estou pensando numa coisa, estou pensando noutra.
Não me subordino senão por atavismo,
E há sempre razões para emigrar para quem não está de cama.
(...)

Fui educado pela Imaginação,
viajei pela mão dela sempre,
amei, odiei, falei, pensei sempre por isso,
e todos os dias têm essa janela por diante,
e todas as horas parecem minhas dessa maneira.



Excertos de "A Passagem das Horas", Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

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