sábado, abril 01, 2006

A Gaivota

Está em cena, no Teatro da Cornucópia até 7 de Maio, a primeira encenação que o Luís Miguel Cintra faz de um texto de Tchekov.


Nina

Porque é que você diz que beija a terra que eu pisei? É preciso que me matem. (Apoia-se na mesa.) Estou tão cansada! Se eu pudesse descansar… descansar! (Levanta a cabeça.) Eu sou uma gaivota… Não, não é isso. Eu sou uma actriz. Claro! (Ouve os risos de Arkadina e de Trigorine, escuta e depois corre para a porta a fim de olhar pelo buraco da fechadura.) Ele também veio. (Voltando para junto de Treplev.) Claro… Não tem importância… Pois… Ele não acreditava no teatro, estava sempre a rir dos meus sonhos, e pouco a pouco também eu deixei de acreditar nele, e perdi a coragem… E além disso eu vivia as preocupações de amor, o ciúme, a constante inquietação por causa da criança… E não sabia onde colocar os braços, não sabia estar em palco, não sabia trabalhar com a voz. Você não pode imaginar o que é uma pessoa sentir que representa atrozmente. Eu sou uma gaivota. Não, não é isso… Um dia você matou uma gaivota, lembra-se? Um homem que por ali passava, viu-a e tirou-lhe a vida, por mero acaso, por puro ócio. Belo tema para uma novela… Não, não é isso… (Esfrega a testa) O que é que estava a dizer?... Estava a falar do palco. Agora já me desenrasco muito melhor… Já sou uma verdadeira actriz, represento com gozo, com êxtase, no palco fico como que ébria, e tenho a impressão de ser bela. E agora, durante esta minha estada aqui, dou longas caminhadas a pensar, a pensar, e sinto que cada dia que passa há uma força cada vez maior em mim… doravante sei, compreendo, Costia, que o essencial na nossa profissão no palco ou na pena, o essencial não é a glória, nem o brilho, nem tudo o que eu sonhei, mas sim saber suportar… Saber carregar a cruz e ter fé. Tenho fé e sofro menos, e quando penso na minha vocação, não tenho medo da vida.

Treplev
(tristemente)

Você encontrou a sua vida, sabe para onde vai, enquanto eu flutuo ainda num caos de sonhos e imagens, sem saber porque escrevo e para quem. Não tenho fé e não sei em que consiste a minha vocação.

Nina
(de ouvido à escuta)

Chiu… vou-me embora. Adeus. Quando eu for uma grande actriz, venha ver-me representar. Promete? E agora… (aperta-lhe e mão) Está a fazer-se tarde. Já não me aguento em pé… estou extenuada, tenho fome

Treplev

Fique, eu trago-lhe a ceia…

Nina

Não, não… Não precisa de me acompanhar, eu hei-de encontrar o caminho… Os meus cavalos estão ali perto… Então ela trouxe-o? Paciência. Quando vir o Trigorine, não lhe diga nada. Amo-o. Ainda o amo mais do que dantes… Belo tema para uma novela… Amo-o, amo-o apaixonadamente, amo-o até ao desespero. Como éramos felizes noutros tempos, Cóstia! Lembra-se? Como a vida era clara, quente, alegre, pura, como os sentimentos se pareciam com flores ternas e graciosas… lembra-se? (Recita) “homens, leões, águias e perdizes, veados cornudos, gansos, aranhas, peixes mudos, habitantes da água, estrelas do mar, e tudo aquilo que os nossos olhos não podem avistar, em suma, todas as vidas, todas as vidas, todas as vidas, findo o seu triste ciclo, se extinguiram. Há já milhares de séculos que a terra não acalenta um único ser vivo, e esta pobre lua em vão acende a sua lanterna. As cegonhas já não gritam nos prados ao despertar e já não se ouve o besouro de Maio nas tílias…”
(Deixa-se cair nos braços de Treplev, e depois sai a correr pela porta envidraçada.)

Treplev
(após uma pausa)

Convinha que ninguém a encontrasse no jardim e fosse dizer à mamã…

(Durante dois minutos, em silêncio, rasga todos os seus manuscritos e atira-os para debaixo da mesa; depois abre a porta da direita e sai.)

(...)


A. Tchekov
Tradução de Regina Guimarães

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