domingo, maio 12, 2013

reparo


na velha muito enrugada e muito magra, o cabelo pintado e puxado para cima com laca, que leva  uma carta na mão.
para quem? para uma irmã que vive em Lisboa, para um filho em França, para uma amiga que lhe pediu ajuda?
a carta. na mão, à espera de vez nos correios.

no casal idoso sentado lado a lado no café, no movimento das mãos. primeiro ela, as mãos a tocarem a mesa, para cima e para baixo em movimento lento, como se confirmassem que são mãos e que tocam na mesa. depois ele, com os mesmos movimentos enquanto lhe responde a qualquer coisa.

na velha, muito velha, na mesa em frente e no movimento fragmentado com que leva uma colher de iogurte à boca. tem um chapéu estranho, está sozinha mas depois chegam duas mulheres. filha e neta?

no rapaz de muletas no parque, sentado num banco, as mãos no queixo, a olhar o rio, a olhar o nada, a esperar por nada. um rapaz triste e sozinho, num dia de maio, a primavera a explodir. em que pensa? parece que repete um gesto de solidão mas, perturbado pelas muletas, ficou mais exposto a quem passa. quando olhei para ele, respirou profundamente, retirando por segundos as mãos do queixo, e voltou à pose. penso como é raro ver um homem nitidamente triste a expor a sua tristeza num sítio público.

no casal de reformados (professores?) elegantes, sentados um em frente ao outro, ela a fazer sudokus com a avidez de quem faz um trabalho de casa, alguém lhe disse que era bom para o alzheimer. ele a ler o jornal, de óculos, a carteira masculina pousada na mesa, um anel  no dedo, a barba curta bem aparada.

no rapaz jovem que tira a t-shirt e se deita numa das plataformas em frente ao rio, a apanhar sol, como eu, que também me deitei numa plataforma, comi uma laranja e, como ele, fico a observar o rio, com mil reflexos, e os divertidos patinhos, amarelos e cinzentos, sempre atrás da mãe, aos saltos a tentar apanhar pequenos insectos.

no homem que se aproximou da margem do rio para observar os patinhos, a mulher dele ficou atrás, de óculos de sol e braços cruzados. o homem observa a vida e ela espera, e eu penso que aquilo não vai dar certo, se os dois não se comovem com a vida num domingo cheio de sol, não pode dar certo. depois ele senta-se numas pedras mesmo na margem, olha para trás e faz um sinal para a chamar "senta-te aqui", ela vai, fica dois segundos ao lado dele e vão embora.

olho em volta no café. há toda uma filosofia a distinguir os casais que se sentam lado a lado e os que se sentam frente a frente. e lembro-me, uma vez no comboio, um homem furioso a gritar com o revisor porque os dois bilhetes, para ele e para a mulher eram frente a frente e não lado a lado, porque se os bilhetes eram para ele E A MULHER DELE tinham de ser LADO A LADO. uma conversa impossível de tão irracional, toda a gente a olhar, e a mulher, encolhida, envergonhada.

subo as escadas rolantes e vejo os casais de domingo, as caras de quem faz o frete de "ir dar uma volta", a necessidade de se entreterem com o que vêem, com compras, com o material de conversa que um centro comercial dá, "olha ali, não gostas?", para não se terem de olhar verdadeiramente depois da noite anterior, do sexo que houve ou não houve, das máscaras que puseram, do regresso ao quotidiano insosso mas necessário para que, para a semana, haja novamente a "noite anterior".

e penso que é uma pena que as pessoas (todos nós) não se aceitem como são. que os homens e as mulheres não aceitem que a pessoa que têm ao lado é um animal indomável e maluco, com pulsões estranhas e pensamentos aleatoriamente maravilhosos.
e que tantas vezes, seja lá por que motivos, se tente "amansar a fera", como na obra de Shakespeare, sempre usando o controle, a violência, o condicionamento (do outro, de nós próprios, das nossas emoções), para não deixar que essa animalidade nos afecte, nos relembre como somos, para tentar manter um poder que de facto não temos, aniquilando o que de mais profundo somos, anulando as potencialidades de crescermos e aprendermos uns com os outros.

e penso que a minha vida ultimamente tem sido pautada por uma montanha de constrangimentos, pressões, stress, dores físicas, cansaço, má disposição, mas que, nos intervalos, coisas boas acontecem.

hoje está um dia lindo, apanhei sol junto ao rio, deixei que a vida me tocasse, e sei que "eu vou dar certo", porque a vida sempre nos leva para onde e para quem precisamos, porque sei que quero crescer e aprender, e dar-me à vida.







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