domingo, maio 29, 2011

dia


Peder S. Kroyer



quinta-feira, maio 26, 2011






"Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?"




Lisbon Revisited (1923), Álvaro de Campos

sábado, maio 21, 2011

começar

Há momentos em que parece que tudo vai começar, somos invadidos pela energia do início, como se estivéssemos na linha de partida a aguardar o sinal do tiro que nos fará entrar em acção.

Conhecemos alguém diferente, temos uma conversa reveladora, iniciamos uma actividade nova ou um hábito bom, descobrimos um lugar, e de repente vê-mo-nos abertos a novos encontros, interacções, relacionamentos, vê-mo-nos a fazer outras coisas, com as mesmas e outras pessoas, a experimentar, a procurar, a ir mais longe no que somos e queremos ser.

No entanto, são também frequentes os falsos tiros. Achamos que vamos correr e afinal não saímos do lugar. Mantemos-nos na linha, em posição, concentrados, atentos ao futuro que parece vir ao nosso encontro ao mesmo tempo que nos preparamos para correr na sua direcção. Mas nem o tiro de partida soa, nem nós nos arriscamos a avançar, a quebrar as regras.
E a energia esgota-se, e ficamos sós, à espera.

quinta-feira, maio 19, 2011

menina dança




... e esta menina ficou com vontade de dançar.

terça-feira, maio 17, 2011

notas soltas sobre gestos, genética, cicatrizes, mudanças

1.
O miúdo com 4 anos, comia uma maçã, e a tia, que tomava conta dele, disse "até a maçã ele come da mesma maneira que o pai". O miúdo nunca conheceu o pai nem a mãe.
Eu devia ter 7 anos quando ouvi aquela frase. Olhei para o miúdo para ver como comia a maçã: em vez de a roer à volta do caroço, começava  a trincar por cima e seguia descendo até à base. Tentei imitá-lo mas percebi que não dava jeito nenhum e voltei a roer como sempre fiz.

Este episódio, talvez pela estranheza do comentário, ficou-me na memória. Não sei se foi logo nessa ocasião ou se já era mais crescida quando me coloquei a pergunta, se haveria gestos que se transmitem geneticamente, que não aprendemos de ninguém, mas que surgem, por vezes saltando gerações.

2.
A professora de movimento explicava que facilmente adquiria a gestualidade e expressões verbais de quem ela admira ou com quem passa muito tempo.
Referia-se a esta situação como "simbiose". Não sei se o conceito está correcto, (as relações simbióticas, do pouco que sei, implicam perda de identidade) mas comigo isso por vezes também acontece.
Toda a gente conhece casais que depois de alguns anos de casamento se começam a parecer, não só no comportamento, mas também fisicamente.
A mim e ao X., que não éramos namorados mas passávamos muito tempo juntos, perguntavam se éramos irmãos, porque adquirimos gestos e formas de comunicar um do outro.
Hoje vi uma fotografia de um casal. Só a conheço pessoalmente a ela. Como ela fez quimioterapia tinha o cabelo muito curto. Ele é careca. Fisicamente podia dizer serem irmãos, e no entanto nasceram em lados opostos do mundo, em culturas muito distintas.

3.
O nosso corpo muda constantemente. Envelhecemos. As células morrem, substituem-se, morrem, substituem-se mais lentamente, transformam-se, adoecem , não se renovam mais e morremos.
Li algures que o cancro acontece porque há células que se recusam a morrer. Ao quebrarem o ciclo, ao tornarem-se mais fortes e imunes ao desgaste do tempo, paradoxalmente, conduzem o corpo mais rapidamente para a morte.
Ao longo da vida vemos o nosso corpo mudar muitas vezes. Crescemos, engordamos, emagrecemos, temos cabelos brancos, pintamos o cabelo, temos calos nos pés ou nas mãos, ficamos surdos, vemos mal ou deixamos de ver, usamos próteses, escurecemos a pele, usamos cremes, fazemos tatuagens, furamos as orelhas, o nariz, a lingua, etc, temos marcas e cicatrizes de quedas ou de cirurgias, temos filhos, temos doenças.

4.
O cérebro também é corpo. Tudo é corpo, tudo é pensamento. Mudo o meu corpo, muda o meu pensamento. Mudo o meu pensamento, muda o meu corpo (muda o comportamento mas também pode mudar a morfologia).
Um dia numa conferência numa cidade perto da fronteira ouvi um homem contar que a sua mulher mudava completamente de comportamento quando ia a Espanha. Em Portugal os gestos eram contidos, cabeça baixa, andar lento. Em Espanha tornava-se altiva, enérgica, expansiva.
A geografia, o espaço, também condicionam o pensamento/ corpo. O movimento é espaço. O espaço também é um lugar interior onde nos situamos.

5.
No espectáculo "Auto da Revisitação" (2003?), os actores faziam de actores de uma trupe que estava a ensaiar Gil Vicente. Uma das actrizes, a dado momento, apontava e mostrava várias partes do corpo e dizia coisas como "esta cicatriz fi-la a fazer a personagem Y do espectáculo X". Mostrava-nos no seu corpo uma cartografia de cicatrizes e marcas que representavam a fisicalidade do seu trabalho.
Tenho as minhas cicatrizes, físicas e emocionais, da minha experiência breve e ainda parcial com o palco; uma espécie de dolorosos e inestéticos trofeus de batalha. Do meu outro trabalho também guardo mazelas e doenças. O trabalho muda-nos, molda-nos, transforma-nos.

(...)

sábado, maio 14, 2011


Man Ray

sexta-feira, maio 13, 2011

espaço

Aqui onde sou há espaço: para o encontro que vier.
Para onde a vida me leva, para onde o meu olhar se volta, onde se cola, onde se agita.

(As coisas são como são.
Não pedi esta quase imunidade ao mundo e às paixões)

Aqui onde estou o espaço cresce, ainda, e apesar de tudo, cresce.
Como uma redoma, protege-me de mim própria.
Onde estou o espaço abre-se.

O espaço reclama vida.
A vida reclama espaço.
O tempo, esse, observa.

(As coisas são como são.
Como mudá-las?)

Aqui onde estou, espero.
O espaço cresce como um campo verde, estende-se pela vida e reclama:
Nutre-me, Vida.
Desperta-me, Vida.
Vive-me, Vida.

Aqui, onde o espaço avança sobre o tempo, espero o encontro que vier.


(24-04-02)

terça-feira, maio 10, 2011

sábado, maio 07, 2011

correio aéreo


tenho saudades de receber cartas, em papel, de as abrir e encontrar a caligrafia de alguém amigo, de me encontrar com a pessoa distante, através daquele objecto, tão pessoal, único.

hoje recebi, via internet, de um amigo que está longe, uma mensagem que se parece muito com uma carta.
e soube bem. é bom saber que somos lembrados, que fazemos falta. é bom retribuir as saudades.

quinta-feira, maio 05, 2011

o mais alto



O meu avô era um homem alto, o mais alto, mesmo depois de ter conhecido outros homens mais altos, ele continuou a ser o mais alto.
Hoje, de repente, sem razão especial, lembrei-me dele.
De o ver junto à janela da divisão da casa a que se chamava escritório, a olhar para fora, silencioso. Olhava talvez para a montanha, talvez para as árvores (a nogueira, a ameixeira, a austrália nova, a figueira, mais atrás).
Do seu andar lento, das suas mãos fortes, do sorriso quando nos via, do seu beijo na testa, do abraço que dava ao meu pai sempre que se reencontravam ou se despediam.
De nos dizer coisas, às vezes estranhas, às vezes sabias, às vezes malandras, raramente banais.
Um dia citou-me um poema do Miguel Torga sobre a terra. Não me lembro do poema. Gostava muito de me lembrar, de o ter guardado comigo. Mas não me lembro.
O meu avô lia muito. Leu até deixar de conseguir ler.
Lembro-me quando ele ainda usava chapéu. De quando ainda dava passeios pela vinha. E de uma vez, numa caminhada familiar, talvez num domingo de Páscoa, o meu irmão começar a chorar, porque aquela podia ser a última caminhada em conjunto.

O meu avô era um homem alto. O mais alto.
Como os plátanos altos da aldeia que ele ajudou a plantar.