terça-feira, maio 17, 2011

notas soltas sobre gestos, genética, cicatrizes, mudanças

1.
O miúdo com 4 anos, comia uma maçã, e a tia, que tomava conta dele, disse "até a maçã ele come da mesma maneira que o pai". O miúdo nunca conheceu o pai nem a mãe.
Eu devia ter 7 anos quando ouvi aquela frase. Olhei para o miúdo para ver como comia a maçã: em vez de a roer à volta do caroço, começava  a trincar por cima e seguia descendo até à base. Tentei imitá-lo mas percebi que não dava jeito nenhum e voltei a roer como sempre fiz.

Este episódio, talvez pela estranheza do comentário, ficou-me na memória. Não sei se foi logo nessa ocasião ou se já era mais crescida quando me coloquei a pergunta, se haveria gestos que se transmitem geneticamente, que não aprendemos de ninguém, mas que surgem, por vezes saltando gerações.

2.
A professora de movimento explicava que facilmente adquiria a gestualidade e expressões verbais de quem ela admira ou com quem passa muito tempo.
Referia-se a esta situação como "simbiose". Não sei se o conceito está correcto, (as relações simbióticas, do pouco que sei, implicam perda de identidade) mas comigo isso por vezes também acontece.
Toda a gente conhece casais que depois de alguns anos de casamento se começam a parecer, não só no comportamento, mas também fisicamente.
A mim e ao X., que não éramos namorados mas passávamos muito tempo juntos, perguntavam se éramos irmãos, porque adquirimos gestos e formas de comunicar um do outro.
Hoje vi uma fotografia de um casal. Só a conheço pessoalmente a ela. Como ela fez quimioterapia tinha o cabelo muito curto. Ele é careca. Fisicamente podia dizer serem irmãos, e no entanto nasceram em lados opostos do mundo, em culturas muito distintas.

3.
O nosso corpo muda constantemente. Envelhecemos. As células morrem, substituem-se, morrem, substituem-se mais lentamente, transformam-se, adoecem , não se renovam mais e morremos.
Li algures que o cancro acontece porque há células que se recusam a morrer. Ao quebrarem o ciclo, ao tornarem-se mais fortes e imunes ao desgaste do tempo, paradoxalmente, conduzem o corpo mais rapidamente para a morte.
Ao longo da vida vemos o nosso corpo mudar muitas vezes. Crescemos, engordamos, emagrecemos, temos cabelos brancos, pintamos o cabelo, temos calos nos pés ou nas mãos, ficamos surdos, vemos mal ou deixamos de ver, usamos próteses, escurecemos a pele, usamos cremes, fazemos tatuagens, furamos as orelhas, o nariz, a lingua, etc, temos marcas e cicatrizes de quedas ou de cirurgias, temos filhos, temos doenças.

4.
O cérebro também é corpo. Tudo é corpo, tudo é pensamento. Mudo o meu corpo, muda o meu pensamento. Mudo o meu pensamento, muda o meu corpo (muda o comportamento mas também pode mudar a morfologia).
Um dia numa conferência numa cidade perto da fronteira ouvi um homem contar que a sua mulher mudava completamente de comportamento quando ia a Espanha. Em Portugal os gestos eram contidos, cabeça baixa, andar lento. Em Espanha tornava-se altiva, enérgica, expansiva.
A geografia, o espaço, também condicionam o pensamento/ corpo. O movimento é espaço. O espaço também é um lugar interior onde nos situamos.

5.
No espectáculo "Auto da Revisitação" (2003?), os actores faziam de actores de uma trupe que estava a ensaiar Gil Vicente. Uma das actrizes, a dado momento, apontava e mostrava várias partes do corpo e dizia coisas como "esta cicatriz fi-la a fazer a personagem Y do espectáculo X". Mostrava-nos no seu corpo uma cartografia de cicatrizes e marcas que representavam a fisicalidade do seu trabalho.
Tenho as minhas cicatrizes, físicas e emocionais, da minha experiência breve e ainda parcial com o palco; uma espécie de dolorosos e inestéticos trofeus de batalha. Do meu outro trabalho também guardo mazelas e doenças. O trabalho muda-nos, molda-nos, transforma-nos.

(...)

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