segunda-feira, outubro 03, 2011

o salto


Sonhei que acordava num sábado de Inverno. Tu não estavas na cama e por um segundo pensei que te tinha perdido. Mas segui o teu cheiro e encontrei-te no sofá, enrolada num cobertor a olhar para a televisão. Chamaste-me “anda ver” e eu deitei-me ao teu lado. Estava frio, encostei-me a ti e no ecrã vi passar toda a nossa vida. Rimos juntos, abracei-te com força e tu choraste.

Mas não foi isso que aconteceu. Quando acordei não estavas ao meu lado na cama, nem enrolada no sofá e no ecrã não passava a nossa vida. Como em todas as manhãs, corri para as janelas, confirmei que estavam fechadas.

Saí para a rua ainda em pijama, o kispo vestido à pressa e as botas por apertar. Meti-me no carro, e chovia e eu não via nada à minha frente, mas tinha de te encontrar, como te encontrava sempre. Corri toda a cidade, todos os sítios onde costumavas estar em manhãs assim.

Mas tu eras um nome numa pedra. E ao meu lado só havia mulheres velhas vestidas de preto, flores, cheiro a cera queimada, ladainhas e ocasionalmente um choro ao longe.

Devo ter ficado muito tempo a olhar para a pedra com o teu nome, a tentar chorar, a tentar perceber o que te tinha acontecido porque já era quase noite quando uma das mulheres de preto me veio chamar “vão fechar”.

Tu não podias ser aquela pedra com o teu nome.

Não compreendo. Não choro porque não compreendo. As janelas estavam fechadas. Na noite anterior fizemos amor e parecias feliz. Não me deixaram ver-te. Como podes ser um nome numa pedra, se nunca me deixaram ver-te?

Prometi-te que te salvava, que te salvaria sempre das manhãs de Inverno.

As janelas estavam sempre fechadas.

“Foi só o tempo de ir lá dentro”, disse a vizinha, e correste para a janela aberta.

Tenho o teu cheiro nas minhas mãos, sinto-te no meu corpo, ouço os teus passos e a tua voz doce e triste. A voz que um dia me disse “procura outra mulher quando eu morrer”. Eu abracei-te, a fugir dos teus olhos fundos e disse “não vais morrer”.

Agora sei que todas as mulheres morreram para mim naquela manhã.
Não choro. Procuro-te numa pedra. E as janelas continuam fechadas.



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