quarta-feira, junho 21, 2006

otelo

Otelo, Shakespeare
Excerto do final do II Acto



IAGO — Quê! Estais ferido, tenente?

CÁSSIO — Sim, sem possibilidade de cura.

IAGO — Oh! Não o permita o céu.

CÁSSIO — Reputação, reputação, reputação! Oh! perdi a reputação, perdi a parte imortal de mim próprio, só me tendo restado a bestial. Minha reputação, Iago; minha reputação!

IAGO — Tão certo como eu ser um homem honesto, pensei que houvesses recebido algum ferimento no corpo; há mais prejuízo nisso do que na reputação. A reputação é um apêndice ocioso e enganador; obtido, muitas vezes, sem merecimento, e perdido sem nenhuma culpa. Não perdestes nenhuma reputação, a menos que vos considereis como tendo sofrido semelhante perda. Que é isso, homem! Há muitos meios de reconquistar a estima do general; fostes despedido apenas em um momento de mau humor; um castigo aplicado mais por considerações de ordem geral do que por maldade, justamente como no caso de bater alguém em seu cãozinho inofensivo, para amedrontar um leão temível. Implorai-lhe perdão e ele se tornará vosso outra vez.

CÁSSIO — Preferira implorar o seu desprezo a enganar um comandante tão bom com um oficial tão leviano, bêbado e indiscreto. Embriagado! Falando como papagaio! Provocar brigas, fazer fanfarronadas, jurar e falar empolado com a própria sombra! Ó espírito invisível do vinho! Se não és ainda conhecido por nenhum nome, recebe o de demônio.

IAGO — Quem era o sujeito a quem perseguíeis de espada em punho? Que vos havia feito?

CÁSSIO — Não sei.

IAGO — Será possível?

CÁSSIO — Recordo-me de uma infinidade de coisas, mas nada distintamente; de uma briga, porém não de seus motivos. Oh Deus! Terem os homens o inimigo na própria boca, para roubar-lhes o cérebro! Constituir para nós alegria, prazer, divertimento e júbilo isso de nos transformarmos em brutos!

IAGO — Mas é interessante que estais agora inteiramente lúcido! De que modo recuperastes os sentidos assim tão depressa?

CÁSSIO — Aprouve ao demônio da embriaguez ceder o lugar ao demônio cólera. Uma imperfeição me mostra outra, ensinando-me a detestar-me sem reservas.

IAGO — Ora, vamos; sois um moralista muito severo. Considerando-se o momento, o lugar e as condições da cidade, sinceramente, eu preferira que tudo isso não houvesse acontecido; mas já que é como é, tratai de consertar as coisas em proveito próprio.

CÁSSIO — Vou pedir-lhe que me reintegre no meu posto; ele vai responder-me que eu sou um bêbado. Se eu tivesse tantas bocas como a hidra, semelhante respostas mas entupiria todas. Há pouco eu era um indivíduo ajuizado; logo depois, um tolo; e neste momento, um bruto. Oh! é terrível! E amaldiçoado todo copo bebido fora da conta, sendo o seu conteúdo o próprio diabo.

IAGO — Vamos, vamos; o bom vinho é um camarada bondoso e de confiança, quando tomado com sabedoria; não continueis a falar mal dele. E, meu bom tenente, creio que tendes çerteza de que vos tenho amizade.

CÁSSIO — Já tive disso sobejas provas, senhor. Eu, bêbado!

IAGO — Ora, homem! Vós, ou qualquer pessoa viva podeis embriagar-vos de vez em quando. Vou dizer-vos o que deveis fazer. A mulher do nosso general é agora o general. Posso exprimir-me dessa maneira, por ter-se ele devotado e dedicado à contemplação, ao exame e à observação de suas partes e graças. Falai-lhe com franqueza; importunai-a, que ela vos ajudará a reconquistar esse lugar. É de uma disposição tão franca e generosa, tão bondosa e abençoada, que em sua bondade considera vício não fazer mais do que o que se lhe pede. Pedi-lhe que conserte a fratura da articulação existente entre vós e o marido dela. E todos os meus bens contra qualquer coisa sem valor em como essa fratura do vosso amor vai ficar mais forte do que era antes.

CÁSSIO — Dais-me um bom conselho.

IAGO — Podeis crer que o faço com a maior sinceridade e com afeição honesta.

CÁSSIO — Tenho certeza disso; logo que amanhecer, vou pedir à virtuosa Desdêmona que interceda a meu favor. Perderei a confiança na sorte, se ela me for contrária neste passo.

IAGO — Tendes razão. Boa noite, tenente; preciso ir para a guarda.

CÁSSIO — Boa noite, honesto Iago. (Sai.)

IAGO — Quem poderá dizer que eu represento papel de celerado, se o conselho que eu dei é honesto e leal, muito plausível e em verdade o caminho para ao Mouro vir a reconquistar? Sim, porque é muito fácil de conseguir que a complacente Desdêmona se empenhe em qualquer súplica honesta; é dadivosa com a terra. E para obter do Mouro qualquer coisa — muito embora para ele se tratasse de abrir mão do batismo, das insígnias e símbolos de uma alma redimida — tanto ele o coração traz encadeado na afeição de Desdêmona, que tudo fazer ou desfazer ela consegue, como entender, reinando como deusa sua vontade sobre o fraco esposo. Estarei sendo, acaso, um celerado, por ter mostrado a Cássio esse caminho que vai dar ao seu bem, diretamente? Divindades do inferno! Quando os diabos querem dar corpo aos mais nefandos crimes, celestial aparência lhes emprestam, tal como agora faço. Pois, enquanto este imbecil honesto pede à bela Desdêmona que cure a sua sorte, e ela sobre isso insiste junto ao Mouro, veneno deitarei no ouvido dele, com dizer que ela o faz só por luxúria; quanto mais houver feito ela por ele, mais, junto ao Mouro, há de perder o crédito. Transformarei em pez sua virtude, e com a própria bondade apresto a rede que há de a todos pegar. (Volta Rodrigo.) Então, Rodrigo?

RODRIGO — Sigo-te nesta caçada não como um cachorro que persegue, mas como o que apenas completa a matilha. Já gastei quase todo o meu dinheiro; esta noite fui sovado de rijo, estando certo de que o resultado final consistirá em ganhar experiência à custa própria, e, assim, sem dinheiro nenhum e com um pouco mais de sabedoria, voltar para Veneza.

IAGO — Quão pobre é quem carece de paciência! Qual é a ferida que não sara aos poucos? Bem sabes que eu trabalho com a cabeça, não por meio de mágica, e em tudo depende aquela do tardio tempo. Não vai tudo tão bem? Cássio bateu-te; e em troca dessas dores de brinquedo fizeste que ele o seu lugar perdesse. Posto sazone o sol todos os frutos, os da primeira floração se tornam maduros mais depressa. Sê paciente. Mas, pela Missa! Já é quase dia! Os folguedos e a ação as horas fazem parecer muito curtas. Mas retira-te; vai logo para o teu alojamento. Não te demores, digo; mais de espaço te contarei o que há. Vamos, retira-te. (Sai Rodrigo.) E agora, duas coisas: sobre Cássio, falar minha mulher junto à senhora; vou concitá-la já. Nesse entrementes, chamarei o Mouro para que venha encontrar Cássio, quando falando estiver este com Desdêmona. Esse é o caminho certo; que a tardança não me faça perder a segurança. (Sai.)


http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/otelo.html

2 comentários:

Alexandre Dias Pinto disse...

Iago é de longe a mais fascinante personagem de 'Otelo'. Desdémona é um pãozinho sem sal, Otelo um monga ciumento e Cássio um bocó.
Parabéns pelo blogue.

natalie disse...

a interpretação do Iago feita pelo actor Danilo Grangheia,do Grupo Folias d'Arte (São Paulo), com encenação de Marco António Rodrigues, foi ainda mais fascinante que o texto escrito! aliás todas as interpretações foram maravilhosas! nesta encenação a Desdémona era tudo menos um pãozinho sem sal, mas antes uma mulher/menina quente, sensual, louca por sexo com o seu mouro! Pena que já foram embora... veria vezes sem conta esta encenação brasileira do clássico de Shakespeare! (estiveram no fitei e no mite)

http://www.fitei.com/otelo.htm