quarta-feira, dezembro 31, 2014
terça-feira, dezembro 30, 2014
Aniversário
No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
15/10/1929
Fernando Pessoa/ Álvaro de Campos
quarta-feira, dezembro 24, 2014
céu
Calvin & Hobbes, Bill Watterson
quase todas as vésperas de Natal, na aldeia, tinham um momento assim, de profunda maravilha e contemplação, ao olhar o céu estrelado, enquanto as mãos e os pés gelavam.
mas o apelo das estrelas era mais forte que o frio, e mesmo que só conseguísse permanecer na rua por poucos minutos, sentia-me magnetizada pelo brilho de todas aquelas luzes, num espaço sem fim.
que haja luz. que brilhem estrelas sempre dentro de nós. que o sonho permaneça. que tenhamos sempre capacidade de nos maravilharmos. que o desconhecido nos deslumbre.
bom natal
domingo, dezembro 21, 2014
domingo, dezembro 14, 2014
terça-feira, dezembro 02, 2014
domingo, novembro 30, 2014
sexta-feira, novembro 28, 2014
capacitar
"I have come to the frightening conclusion that I am the decisive element. It is my personal approach that creates the climate. It is my daily mood that makes the weather. I possess tremendous power to make life miserable or joyous. I can be a tool of torture or an instrument of inspiration, I can humiliate or humor, hurt or heal. In all situations, it is my response that decides whether a crisis is escalated or de-escalated, and a person is humanized or de-humanized. If we treat people as they are, we make them worse. If we treat people as they ought to be, we help them become what they are capable of becoming."
Goethe
Goethe
quarta-feira, novembro 19, 2014
sábado, novembro 15, 2014
confissão
(é chato e estou cansada de cedencias e consensos não negociados, de não-conversas, não-nadas.
de ficar a meio, no meio; por medo ou cansaço ou preguiça.
estou cansada de ser lateral. da invisibilidade.
não estou triste ou irritada. nada disso.
de ficar a meio, no meio; por medo ou cansaço ou preguiça.
estou cansada de ser lateral. da invisibilidade.
não estou triste ou irritada. nada disso.
foi só um pouco de lucidez ou loucura que me atacou.
quero tudo! não mais metades.
quero intensidade, entrega, presença.
quero "sentir tudo de todas as maneiras, viver tudo de todos os lados".
cederei sim, se houver merecimento.)
sexta-feira, novembro 14, 2014
segunda-feira, novembro 03, 2014
madredeus
início dos anos 90, faculdade e eu com uma paixoneta adolescente por um rapaz mais velho que mal conhecia e quase nunca via.
e porque nunca via, mais imaginava; estremecia quando passava perto dos locais onde era mais provável vê-lo; ficava atenta aos carros iguais ao dele; relembrava o momento em que nos conhecemos, as vezes em que trocamos algumas palavras.
a cisma era tão grande, que me absorvia toda e comecei a dizer-me que não era possível, que era estúpido ocupar a cabeça com pensamentos destes, que nunca mais o iria ver, que paixões e amores só nos livros e nos filmes. (enquanto, secretamente, boicotava a razão, inventando amores e paixões como nos livros e nos filmes).
tudo tão tolo, tão inocente, tão juvenil, tão idealizado, de um romantismo que não cabe mais...
mas aquele tipo de estremecimento, o aperto no coração, as mãos nervosas, as pernas a tremer, as palavras trocadas, só por estar na presença de uma pessoa, raramente voltei a sentir com a mesma intensidade.
o que veio depois foram quase imitações, comparações; sequelas frágeis de um terramoto que, por ter destruido tanto, pouco deixou para abalar.
a última vez que o vi foi num concerto dos madredeus. uma confusão de gente a sair do local improvisado que arranjaram para o concerto, que teria sido ao ar livre se não estivesse a chover. gente a empurrar-se, a querer sair, pouco espaço e, de repente, olho para trás. lá estava ele, um sorriso enigmático, acompanhado por uma rapariga com um "ar francês", bonita, bem vestida, diferente. cumprimentamo-nos. fiquei em choque. durou horas. no elevador, quando finalmente fiquei sozinha, uma descarga química, como uma droga, fez-me flutuar.
pouco depois esqueci-o, claro.
no filme "Her" de Spike Jonze, Theodore diz "...and sometimes I think I have felt everything I'm ever gonna feel, and from here on out I'm not gonna feel anything new... just... lesser versions of what I've already felt."
quero acreditar que não. que seremos sempre versões mais amplas do que fomos. com a sabedoria de não querer comparar sentimentos, para que venham sempre novos, vivos, para que os possamos experimentar como uma criança.
e porque no mesmo filme também se diz "The past is just a story we keep telling ourselves", com que palavras e ideias nos queremos re-construir, sem evitar, obviamente, as partes dolorosas, os erros, as mentiras, as falhas?
que passado queremos re-contar?
quinta-feira, outubro 30, 2014
terça-feira, outubro 21, 2014
dança da alma
"Mas o que é a intuição? São todas essas evidências, é esse encontro entre as pré-figurações da minha mente, sejam elas inatas (instintivas) ou aprendidas, e as configurações do mundo. É essa dança entre os meus impulsos nervosos e os estados do mundo. É a dança da alma. É o encontro entre os estados do meu corpo e os estados do mundo. E os estados do meu corpo não se relacionam apenas com o movimento. Se eu estiver bem treinado na dança da alma, logo que me encontre com a noite, o corpo fica cansado, o pensamento esvai-se e adormeço. Danço com a rotação da Terra até acordar quando de novo ela se virar para o Sol. E danço com a transladação da Terra quando a primavera me alegra e o outono me amolece. Não fossem as luzes da civilização, estes computadores que não me deixam descansar e as palavras que me inquietam, eu poderia melhor dançar em harmonia com a natureza.
Mas tenho mais com quem me encontrar, tenho mais com quem dançar. Encontro-me com outras pessoas, com as que me são queridas e com as que desejo. Encontro-me e desencontro-me, sofrendo alegrias e tristezas, dominando às vezes, sendo outras vezes submetido. E também procuro pares entre as pessoas que me eram desconhecidas. Às vezes, a empatia é imediata, e as nossas mentes acertam a dança. Outras vezes bem se tenta, mas as pisadelas são demais e o afastamento inevitável. Nem sempre se acerta a dança, mas sempre se pode tentar e aprender. Aliás, nada melhor para aprender do que começar com o desacerto. Todos procuramos a harmonia, mas, quando vamos à procura dela, o que mais encontramos é a dissonância. Quando a encontram, ou rapidamente se afastam dela, ou imediatamente se põem a trabalhar para reencontrar a harmonia. Quando a reencontramos provisoriamente, pensamos que descobrimos a verdade, mas logo novas dissonâncias nos devolvem a inquietação. A essa inquietante procura, chamamos curiosidade."
J. L. Pio Abreu, "O bailado da alma", D. Quixote, 2014
quinta-feira, outubro 16, 2014
pluralidade
A Pluralidade Humana
"A pluridade humana, condição básica da acção e do discurso, tem o duplo aspecto da igualdade e diferença. Se não fossem iguais, os homens seriam incapazes de compreender-se entre si e aos seus antepassados, ou de fazer planos para o futuro e prever as necessidades das gerações vindouras. Se não fossem diferentes, se cada ser humano não diferisse de todos os que existiram, existem ou virão a existir, os homens não precisariam do discurso ou da acção para se fazerem entender. Com simples sinais e sons poderiam comunicar as suas necessidades imediatas e idênticas.
Ser diferente não equivale a ser outro - ou seja, não equivale a possuir essa curiosa qualidade de «alteridade», comum a tudo o que existe e que, para a filosofia medieval, é uma das quatro características básicas e universais que transcendem todas as qualidades particulares. A alteridade é, sem dúvida, um aspecto importante da pluralidade; é a razão pela qual todas as nossas definições são distinções e o motivo pelo qual não podemos dizer o que uma coisa é sem a distinguir de outra.
Na sua forma mais abstracta, a alteridade está apenas presente na mera multiplicação de objectos inorgânicos, ao passo que toda a vida orgânica já exibe variações e diferenças, inclusive entre indivíduos da mesma espécie. Só o homem, porém, é capaz de exprimir essa diferença e distinguir-se; só ele é capaz de se comunicar a si próprio e não apenas comunicar alguma coisa - como sede, fome, afecto, hostilidade ou medo. No homem, a alteridade, que ele tem em comum com tudo o que existe, e a distinção, que ele partilha com tudo o que vive, tornam-se singularidades e a pluralidade humana é a paradoxal pluralidade dos seres singulares."
Hannah Arendt, in 'A Condição Humana'
terça-feira, outubro 14, 2014
what remains
“I will always carry you
inside
outside
on my fingertips
and at brain edges
and in centers
centers
of what I am of
what remains.”
inside
outside
on my fingertips
and at brain edges
and in centers
centers
of what I am of
what remains.”
Charles Bukowski, from Selected Poems |
sexta-feira, outubro 10, 2014
domingo, setembro 21, 2014
love poem to myself
“Sometimes I spend half the night
answering the emptiness, hoping it is you. Memory is just
another form of imagination. Now the glasses are empty.
A future flies into the rafters. Daylight leaks into my dream.
Eventually I may have to write a love poem to myself”
answering the emptiness, hoping it is you. Memory is just
another form of imagination. Now the glasses are empty.
A future flies into the rafters. Daylight leaks into my dream.
Eventually I may have to write a love poem to myself”
Richard Jackson, from “Having a Drink with the Gods,” Heartwall |
quinta-feira, setembro 18, 2014
sábado, setembro 13, 2014
segunda-feira, setembro 08, 2014
domingo, setembro 07, 2014
sexta-feira, setembro 05, 2014
segunda-feira, setembro 01, 2014
the waiting game
"Oh, it's a long, long while from May to December
But the days grow short when you reach September
When the autumn weather turns the leaves to flame
One hasn't got time for the waiting game"
quinta-feira, agosto 28, 2014
domingo, agosto 24, 2014
fantasia
amanhã vou ao casamento de dois queridos amigos, estaremos lá todos para brindar à sua felicidade.
apesar de alguns exemplos de casais que "dão a volta" às rotinas e que se permitem ir além das esperadas e previsíveis crises
apesar de alguns exemplos de pessoas que, quase sempre com muita dor, ultrapassaram e deixaram relações sem futuro para irem em busca do que merecem: respeito mútuo, de autenticidade, paixão e lealdade
apesar de conhecer uns poucos casais que celebram com alegria e infinita compreensão as suas diferenças, transformando-as em desafios, material para o auto-conhecimento e crescimento individual
infelizmente, cada vez me sinto mais céptica em relação ao amor romântico e à sobrevivência de relações de intimidade. pergunto-me se não se trata de uma fantasia, vendida na infância com os contos de fadas...
por isso desejo aos meus amigos toda a perseverança, criatividade, capacidade de se enamorarem continuamente, de perceberem os ciclos e as mudanças; que consigam fluir, com alegria, capacidade de escuta e dádiva um ao outro; e sempre nutridos de suficiente amor próprio para que o crescimento individual alimente a relação, transformando-a e permitindo que evolua.
aos dois, "mazel tov"!
terça-feira, agosto 12, 2014
educação sexual
a série é muito boa, este episódio imperdível.
é um rasgo contra a mediocridade, contra o sexismo, uma subtil lição sobre sexo e conflito, sexo e poder, sobre sensualidade, a importância das fantasias, sobre o masculino e feminino na genética e na cultura, sobre como somos condicionados pelas experiências passadas e a esperança de, com sensibilidade e tacto, superarmos esses constrangimentos.
condensa de uma forma exemplar muito do que tenho reflectido ultimamente e que não conseguia verbalizar. e ainda lança mais dados para aprofundar a reflexão.
domingo, julho 27, 2014
segunda-feira, julho 21, 2014
lost
sábado, julho 19, 2014
terça-feira, julho 15, 2014
sexta-feira, julho 11, 2014
ternura
deixar pistas para que a ternura nos surpreenda
apesar da opressão
da angústia
do quotidiano
da desesperança
deixar uma janela aberta
sábado, julho 05, 2014
solitude
Edward Steichen,1923
passo muito tempo sozinha
passo muito tempo acompanhada
mas
sinto falta da "solidão acompanhada"
do silêncio partilhado sem desconforto
ou
“Don't you hate that? Uncomfortable silences. Why do we feel it's necessary to yak about bullshit in order to be comfortable? That's when you know you've found somebody special. When you can just shut the fuck up for a minute and comfortably enjoy the silence."
Pulp Fiction
segunda-feira, junho 30, 2014
sábado, junho 21, 2014
promessa
falar menos
falar menos
falar menos
(para quem foi, durante anos, apelidada de "caladinha", fazer um esforço para falar menos parece um pouco estranho, mas é preciso.)
quarta-feira, junho 18, 2014
quinta-feira, junho 12, 2014
no meio
não, a vida não é um romance
mas também não é um filme pornográfico
não, a vida não é o que idealizamos
mas é a imaginação que nos faz ir em frente
querer de mais pode aniquilar o presente
mas sem vontade não há futuro
se somos quase sempre excesso ou falha
há sempre qualquer coisa aí no meio
onde vamos?
(mergulhar para voltar à superfície. crescer. comunicar. dar.)
domingo, junho 08, 2014
quinta-feira, junho 05, 2014
segunda-feira, maio 26, 2014
sexta-feira, maio 23, 2014
consolo
"I have always depended on the kindness of strangers."
Blanche DuBois, in "A Streetcar named desire", Tennessee Williams
ou
"a nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer"
de Stig Dagerman
ou seja,
raramente se tem o consolo que se precisa quando se precisa
resta-nos dormir e esperar que tudo corra bem.
e tantas vezes
é a bondade de estranhos
que curiosamente
consola.
sábado, maio 17, 2014
quinta-feira, maio 15, 2014
contos de fadas
todos sabemos que o "happy end" é uma invenção, que nunca se é "feliz para sempre", e que, se não existem mais príncipes encantados, também nenhuma princesa deverá querer ser salva.
seremos, quando muito, salvos por nós próprios, talvez com os pós de perlimpimpim que inventarmos dentro de nós.
seremos, se quisermos, salvos uns pelos outros, se tivermos a humildade de receber o que nos pode ser dado, e o desprendimento para dar o melhor de nós aos outros.
mas, continuamos a gostar de contos de fadas, de magia, de superação de provas, de histórias de amores desencontrados, de monstros que afinal são príncipes, de princesas rebeldes, madrastas, bruxas e rainhas más, fadas madrinhas e animais que falam, aventuras sem fim, que terminam quase sempre bem, com uma reunião dos dois namorados ou reunião familiar, em que o "bem" derrota o "mal".
continuamos a gostar porque, acredito, eles falam ao nosso inconsciente, falam-nos de arquétipos, transmitem-nos as mensagens que precisamos ouvir, e que podem ser diferentes em cada revisita da história, de acordo com a nossa maturidade e com o "problema" ou "questão" pessoal que enfrentamos em cada momento.
por isso, fugindo ao politicamente correcto, não vejo necessidade de substituir os contos antigos e, por exemplo, deixar de existir um "lobo mau" ou deixar de haver "princesas salvas por príncipes", porque o que interessa, creio, é ler o que estas personagens e estas mensagens querem dizer à luz dos nossos tempos, e pensando mais em arquétipos do que na interpretação literal (o "lobo mau" não representa o animal lobo, mas um arquétipo do "mal"; a princesa na torre à espera de ser salva também não tem de representar apenas o género feminino mas um tipo de personalidade; etc).
podemos, obviamente, e a liberdade criativa e poética permite-nos isso, criar novas histórias, com novos desafios e personagens, baseados ou não nos contos antigos, dando novas luzes e perspectivas sobre a realidade e as nossas preocupações de hoje.
sempre com o possível "happy end", claro!
segunda-feira, maio 05, 2014
quarta-feira, abril 30, 2014
sem repetir
"Há duas afirmações do amor. Primeiro, e logo que o apaixonado encontra o outro, há uma afirmação imediata (psicologicamente: deslumbramento, entusiasmo, exaltação, projecção louca de um futuro pleno: sou devorado pelo desejo, a impulsão de ser feliz): digo que sim a tudo (cegando-me). Segue-se um longo túnel: o meu primeiro sim está atormentado por dúvidas, o valor do amor está permanentemente ameaçado de depreciação: é o momento da paixão triste, a ascensão do ressentimento e da oblação. Deste túnel posso, no entanto, sair; posso "ultrapassar", sem liquidar; posso novamente afirmar o que já afirmei uma vez, sem o repetir, pois agora o que afirmo é a afirmação, não a sua contingência: afirmo o primeiro encontro na sua diferença, quero o seu regresso, não a sua repetição. Digo ao outro (velho ou novo): Recomecemos."
Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso
segunda-feira, abril 28, 2014
touch me
(sexta feira fui dançar a um dos sítios mais feios da cidade,eramos meia dúzia de gatos pingados, mas a música óptima, o dj acedeu a quase todos os nossos pedidos e esta foi uma das músicas que dançamos.
o bar abriu em 1993 e naquela altura era um piano-bar que só passava jazz e era frequentado por pessoas "mais velhas", mas eu gostava de ir lá conversar e beber um copo.
depois passou a ser mais um bar-discoteca de música "alternativa" e metal. a música sempre foi boa, mas o ambiente por vezes ficava muito pesado. além disso, com o tempo, e como quase todos os bares para estudantes em Coimbra, passou a ser só uma caixa de fazer dinheiro, sem qualquer tipo de estilo/conceito ou decoração, sem nada que apele a ficar lá muito tempo. mas a música continua boa.)
domingo, abril 27, 2014
blues
Blues da morte de amor
já ninguém morre de amor, eu uma vez andei lá perto, estive mesmo quase, era um tempo de humores bem sacudidos, depressões sincopadas, bem graves, minha querida, mas afinal não morri, como se vê, ah, não, passava o tempo a ouvir deus e música de jazz, emagreci bastante, mas safei-me à justa, oh yes, ah, sim, pela noite dentro, minha querida.
a gente sopra e não atina, há um aperto no coração, uma tensão no clarinete e tão desgraçado o que senti, mas realmente, mas realmente eu nunca tive jeito, ah, não, eu nunca tive queda para kamikaze, é tudo uma questão de swing, de swing, minha querida, saber sair a tempo, saber sair, é claro, mas saber, e eu não me arrependi, minha querida, ah, não, ah, sim.
há ritmos na rua que vêm de casa em casa, ao acender das luzes, uma aqui, outra ali. mas pode ser que o vendaval um qualquer dia venha no lusco-fusco da canção parar à minha casa, o que eu nunca pedi, ah, não, manda calar a gente, minha querida, toda a gente do bairro, e então murmurarei, a ver fugir a escala do clarinete: — morrer ou não morrer, darling, ah, sim.
Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos
(um texto tão bonito. obrigada.)
domingo, abril 20, 2014
onde nos encontramos
Todos sofremos.
O mesmo ferro oculto
Nos rasga e nos estilhaça a carne exposta
O mesmo sal nos queima os olhos vivos.
Em todos dorme
A humanidade que nos foi imposta.
Onde nos encontramos, divergimos.
É por sermos iguais que nos esquecemos
Que foi do mesmo sangue,
Que foi do mesmo ventre que surgimos.
Ary dos Santos, in ‘Liturgia do Sangue’
quarta-feira, abril 16, 2014
sexta-feira, abril 11, 2014
quarta-feira, abril 02, 2014
auto estima
Ralph Gibson
(estive a ver fotografias minhas de há dez anos atrás. porra, porque é que ninguém me avisou que era uma "gaja boa"? :) o tempo não volta atrás, mas a auto-estima alegra-se por me saber agora mais auto-consciente.)
sábado, março 29, 2014
nunca, também
Amor
Cala-te, a luz arde entre os lábios,
e o amor não contempla, sempre
o amor procura, tacteia no escuro,
essa perna é tua?, esse braço?,
subo por ti de ramo em ramo,
respiro rente á tua boca,
abre-se a alma à lingua, morreria
agora se mo pedisses, dorme,
nunca o amor foi facil, nunca,
também a terra morre.
Eugénio de Andrade
quarta-feira, março 19, 2014
domingo, março 16, 2014
quarta-feira, março 12, 2014
segunda-feira, março 10, 2014
O actor
O actor acende a boca. Depois os cabelos.
Finge as suas caras nas poças interiores.
O actor pôe e tira a cabeça
de búfalo.
De veado.
De rinoceronte.
Põe flores nos cornos.
Ninguém ama tão desalmadamente
como o actor.
O actor acende os pés e as mãos.
Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela.
Bocado janela para fora.
Outro bocado gruta para dentro.
O actor toma as coisas para deitar fogo
ao pequeno talento humano.
O actor estala como sal queimado.
O que rutila, o que arde destacadamente
na noite, é o actor, com
uma voz pura monotonamente batida
pela solidão universal.
O espantoso actor que tira e coloca
e retira
o adjectivo da coisa, a subtileza
da forma,
e precipita a verdade.
De um lado extrai a maçã com sua
divagação de maçã.
Fabrica peixes mergulhados na própria
labareda de peixes.
Porque o actor está como a maçã.
O actor é um peixe.
Sorri assim o actor contra a face de Deus.
Ornamenta Deus com simplicidades silvestres.
O actor que subtrai Deus de Deus, e
dá velocidade aos lugares aéreos.
Porque o actor é uma astronave que atravessa
a distância de Deus.
Embrulha. Desvela.
O actor diz uma palavra inaudível.
Reduz a humidade e o calor da terra
à confusão dessa palavra.
Recita o livro. Amplifica o livro.
O actor acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.
O actor é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente como o actor.
Como a unidade do actor.
O actor é um advérbio que ramificou
de um substantivo.
E o substantivo retorna e gira,
e o actor é um adjectivo.
É um nome que provém ultimamente
do Nome.
Nome que se murmura em si, e agita,
e enlouquece.
O actor é o grande Nome cheio de holofotes.
O nome que cega.
Que sangra.
Que é o sangue.
Assim o actor levanta o corpo,
enche o corpo com melodia.
Corpo que treme de melodia.
Ninguém ama tão corporalmente como o actor.
Como o corpo do actor.
Porque o talento é transformação.
O actor transforma a própria acção
da transformação.
Solidifica-se. Gaseifica-se. Complica-se.
O actor cresce no seu acto.
Faz crescer o acto.
O actor actifica-se.
É enorme o actor com sua ossada de base,
com suas tantas janelas,
as ruas -
o actor com a emotiva publicidade.
Ninguém ama tão publicamente como o actor.
Como o secreto actor.
Em estado de graça. Em compacto
estado de pureza.
O actor ama em acção de estrela.
Acção de mímica.
O actor é um tenebroso recolhimento
de onde brota a pantomina.
O actor vê aparecer a manhã sobre a cama.
Vê a cobra entre as pernas.
O actor vê fulminantemente
como é puro.
Ninguém ama o teatro essencial como o actor.
Como a essência do amor do actor.
O teatro geral.
O actor em estado geral de graça.
Herberto Helder
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