sexta-feira, março 22, 2013

a ferver


foto: Artur Vaz Oliveira



a menina júlia sentou-se na habitual mesa de café. cruzou suavemente as pernas e esperou. os olhos perdidos a esvoaçar contra os vidros baços. apesar de ser quase verão, pediu chá.

monsieur jean, sempre delicado, serviu-a. com gestos precisos pousou cuidadosamente a chávena, o pratinho de biscoitos e o bule. elevou o bule e libertou o líquido quente em direcção à chávena. quando terminou, olhou-a nos olhos,"bom apetite".

a menina júlia olhou-o enquanto se afastava. as costas elegantes, as nádegas perfeitas, o andar altivo e seguro. sentiu-se quente, a ferver, como o chá que bebia. quis tocar-lhe. imaginou-o nu. "uma senhora não devia pensar nestas coisas", e quase se queimava. mas já há algum tempo que a menina júlia tinha deixado de querer fingir que era "esse tipo de senhora".
voltou a olhar, discreta, para o rabo de monsieur jean, os movimentos corporais de um bailarino. imaginou-o num salão de dança, as mulheres todas à sua volta, e ele a rodopiar com ela, em passos de salsa e merengue, samba, chá-chá-chá. o peito firme, as ancas a moverem-se livres, os olhos sempre nos dela, a mão suave, pousada nas suas costas, a conduzi-la por toda a sala. de repente, num passo de tango, as pernas de ambos entrelaçam-se, ele leva-a próximo do chão e num ápice, sempre firme, puxa-a para cima, os rostos próximos, o peito dela colado ao dele, o coração aflito, a respiração ofegante.

a menina júlia, olhos baços contra os vidros do café, face ruborizada, pernas apertadas, o corpo a arder com a sua imaginação. mas, de repente, pensou se toda a delicadeza de monsieur jean não seria falsa. se na intimidade não se revelaria bruto, rápido, sem interesse em agradar-lhe, como se desprezasse o que já estava conquistado. seria monsieur jean um don juan por revelar? um desses homens a quem só a conquista dá tesão e depois murcham?

tudo isto pensava a menina júlia enquanto terminava o chá. e tudo desapareceu rapidamente do seu pensamento quando o marido, finalmente, entrou no café.
sentou-se ao lado dela, pousou um beijo suave na sua mão, "que pensativa!", disse ele. ela sorriu baixando os olhos. depois, aproximou-se dele e murmurou "pensava em ti", enquanto lhe mordiscava, leve e ternamente, o lóbulo da orelha.




(um dos textos muito livres, que me apareceram a partir do trabalho de laboratório para a personagem "menina júlia", de strindberg, em 2011)

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