"Não parece haver segredos nos dias de hoje. É moda dizer que se fala de tudo, seja em que contexto for. É elogiado aquele que depressa dá conta da sua vida íntima em revistas especializadas em escândalos. Processos em "segredo de justiça" surgem com pormenores nos media, como se houvesse um canal directo entre a investigação e alguns jornais. Na televisão os programas de entretenimento expõem a vida privada dos participantes, estimulados por apresentadores sequiosos de mais efeitos fáceis. Nas redes sociais, com destaque para o Facebook, inúmeros "Gosto" aplaudem novos relacionamentos amorosos ou rupturas mais ou menos sangrentas, no mesmo plano em que se aplaudem eventos públicos de qualidade duvidosa. Nas famílias fala-se cada vez menos. Em muitas casas desapareceu o jantar em conjunto, o pequeno-almoço partilhado ou a reunião familiar de fim-de-semana, mas pais espiam os computadores dos filhos e homens e mulheres ciumentos tentam desvendar supostas infidelidades nos telemóveis dos parceiros. Tudo se passa como se se tivesse perdido o limite que separa a esfera íntima do que pode ser partilhado com terceiros, como se não existissem barreiras ao nosso interior e ao que pretendemos (ou podemos) revelar.
Esta sociedade "aberta" não tem melhorado a partilha íntima no casamento, nem levado a uma relação mais aprofundada entre pais e filhos. No casal, é frequente que as diferenças de género tenham sido apagadas em nome de uma "democracia" relacional, como se homens e mulheres tivessem de ser sempre iguais e fosse necessário fazer tudo a dois. A verdade é que temos de procurar contactar com o íntimo do outro, mas ao mesmo tempo conservar a integridade psíquica e as nossas fantasias. Pais demasiado controladores geram nos filhos comportamentos secretos ou atitudes dissimuladoras: onde deveria estar o confronto leal, surge a mentira e a oposição.
No entanto, ninguém jamais poderá ser dono dos nossos pensamentos secretos. Quem poderá impedir que, por momentos, possamos viver noutro lugar? Quem calará o nosso desejo momentâneo e escondido de vivermos com outro companheiro? Esquecerei algum dia aquela ideia persistente e sobrevalorizada de que o meu cônjuge está a ser infiel?
Por mais que a sociedade tente destruir a intimidade, não o conseguirá. A verdade é que o outro é, na realidade, um terceiro, porque eu sou um, mas também um segundo que recebe a comunicação e a devolve. O que dizemos ao outro é apenas uma parte do que verdadeiramente se sente, porque é muito difícil pôr em palavras o nosso íntimo. E, para salvaguarda de muitas relações, não se pode mesmo dizer tudo em todos os momentos. E a partilha, embora necessária, não é fácil. O nosso companheiro está a apreciar uma música do mesmo modo? Numa relação sexual, a intensidade do que um sente é igual à do parceiro e deve ser comparada? O que quero fazer num determinado momento é para ser logo satisfeito com a pessoa com quem partilho a vida?
Os pensamentos secretos são a garantia da nossa integridade psíquica, por isso os doentes com esquizofrenia sofrem quando, dominados por ideias delirantes, acreditam que o seu pensamento é conhecido de todos. No entanto, nada permanece mais importante, nos dias de hoje, do que a tentativa séria de escutarmos e reconhecermos quem está próximo de nós."
Daniel Sampaio
Revista do Público, 17-3-2013
(sublinhado meu)
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