corpo: calcanhares
Os do homem
Ele caminhava à minha frente no pequeno corredor da casa. Trazia umas sandálias de borracha, calças e camisa largas. As pernas magras, o andar leve, como o de um bailarino. Olhei instintivamente para o calcanhar que se mostrava livre, com a tira da sandália a rodeá-lo. Depois para o pescoço, vermelho. Os cabelos já brancos. A pele quase transparente. As mãos longas, lentas e esvoaçantes, a fazerem lembrar as asas de um pássaro. Mas os calcanhares. Pousavam no chão como se não lhe pertencessem. Consegui, só por vê-los, imaginar todo o pé, a curvatura suave, os dedos seguros e leves a tocar no chão, a vontade de voar, a vertigem de cair.
Contou-me, mais tarde, que em criança, se perdia nas estrelas e se imaginava lá longe, onde elas se encontram, como se, ao fechar os olhos, pudesse perder a gravidade e mergulhar naquele útero imenso, voltar à origem.
Os da mulher
A rapariga cozinhava, misturava ingredientes, cortava vegetais, o sal a sair-lhe solto dos dedos, as especiarias na palma da mão, o molho provado na colher de pau, o fumo dos tachos a envolve-la. Tinha uma saia étnica, comprida, t-shirt de alças, uma tatuagem num dos lados do pescoço, o cabelo preto apanhado de forma negligente com uma mola. Uma música oriental ondulava na cozinha. Olhei instintivamente para os pés dela. Estava descalça e num dos tornozelos uma pulseira com guizos. Os pés seguros no chão, os dedos abertos, como garras. Mas os calcanhares. Presentes, fortes, um pouco calejados, levantavam-se milimétricamente do chão a cada movimento, como se quisessem enraizar na terra e fazer de todo o corpo dela uma árvore.
Mais tarde, no campo, ela deitada no chão, o sol a queimar-lhe a cara, ela a misturar-se com a terra, a oferecer-se como semente, amante, a mergulhar naquele útero imenso, para voltar à origem.
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