domingo, janeiro 15, 2012

outra vez

“Os homens não choram”, tinha ouvido dizer numa outra vida. Mas ele chorava e chorava e chorava. O que era normal, afinal, tinha acabado de nascer. “Outra vez” pensava ele no seu choro, e foi o último minuto de pré-consciência que teve. Depois, esqueceu-se de tudo. De como tinha sido lá dentro, o quente e suave embalar do corpo que o hospedou, o vazio do mar materno que lhe deu alimento e o fez crescer, a protecção redonda do ventre, o conforto daquele pequeno universo que o envolveu. Até que.
Até que teve de sair. Era inevitável. Expulso do seu pequeno paraíso, tinha de se fazer à vida. “Outra vez” pensou, e em segundos, milhares de outros nascimentos passaram pelo seu pequeno cérebro. Era preciso cortar esse cordão umbilical com o passado. Era preciso esquecer todas as vezes que nasceu, que amou, que matou, que se enfureceu, que se comoveu, que perdoou e foi perdoado, que se arrependeu, que se ajoelhou perante o mistério; todas as pessoas que conheceu, as mãos que apertou, os corpos que amou, os filhos que teve, as pessoas amadas que perdeu para a morte; todos os minutos de silêncio e de exaltação, o êxtase e a angústia; a miséria e a riqueza, o trabalho e o ócio; esquecer o sal do mar, o calor do sol a queimar-lhe a pele, os bosques frescos, o cheiro dos animais, o som da lenha a crepitar, o sabor generoso dos frutos, a doçura do vinho; esquecer a música, a vitalidade da dança, a emoção de se sentir tocado por uma obra de arte, a emoção de construir, ou de ser ele próprio uma obra de arte.
Estava cá fora, a luz entrava-lhe baça pelos olhos ainda cegos, guiava-se pelo cheiro.
O cheiro do sangue, o cheiro da pele, o cheiro do alimento: Mãe.
Sem saber ainda dizer a palavra, sem saber que tantas e tantas vezes seria separado daquele conforto, já sabia que aquele corpo que o alimentava, aqueles braços que o envolviam, eram tudo o que precisava para se sentir outra vez lá dentro, protegido.
Cresceria. Conheceria o Pai, uma outra protecção. Com o tempo, aprenderia o que precisava para sobreviver. Teria prazer e tristezas. Sentiria o abandono. Reconheceria o amor. Travaria batalhas. Em algumas seria o seu próprio inimigo. Conheceria o cheiro da morte. Teria sonhos e desilusões. Seria pai e veria crescer os seus filhos.
“Outra vez” pensou naqueles ínfimos segundos antes de se perder de novo para a vida.
Passaria por tudo outra vez. Até voltar de novo para dentro do corpo de uma mulher.
Para nascer.
Outra vez.




Abrazo Amoroso
Frida Kahlo


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