Uma das primeiras coisas que aprendi em teatro foi a criar relação. Parecia tão evidente, parecia que estava tudo no texto e que bastava dizê-lo para que as relações entre as personagens surgissem magicamente.
Nada disso.
É preciso tempo, paciência, entrega ao outro, escuta activa, capacidade de receber, generosidade; é preciso saber que a outra pessoa com quem contracenamos também está no mesmo processo, tão ou mais frágil e insegura como nós. É preciso saber que no processo criativo ficamos todos com os nervos em franja, as emoções à flor da pele, por isso é fácil sermos excessivos, e tão facilmente nos zangamos como nos abraçamos. Ficamos mais vulneráveis às criticas, se hoje nos sentimos “lá em cima” por termos conseguido um bocadinho de verdade, no dia seguinte somos a pior porcaria, por termos recuado no processo, por nos termos protegido e impedido de arriscar.
Há anos atrás fiz uma personagem que vai sempre acompanhar-me: um bebé de dois anos. Na verdade fui escolhida para fazer a personagem pela actriz que ia fazer a mãe. Astúcia do encenador, ele sabia que a actriz “mãe” tinha de ter uma afinidade grande com a actriz “filho”, tinha de haver uma compatibilidade de pele.
Durante muito tempo andei perdida: não conseguia mimetizar um bebé por mais observação que fizesse, por mais que visse imagens e filmes.
A personagem apareceu fruto de um conjunto de coisas, mas muito a partir da relação que os actores “mãe” e “pai” estabeleceram comigo, em particular através dos cheiros. Nunca irei esquecer o cheiro doce do colo da “mãe” (pó de talco e incenso) e o cheiro intenso do suor do “pai”.
Eles pegavam em mim ao colo, cantavam-me canções para adormecer, ensinavam-me músicas, brincavam comigo, embalavam-me num berço, protegiam-me, vigiavam-me. A criança surgiu dessa relação entre os três. A sensação de protecção era intensa e sempre presente.
Criar relação implica uma capacidade de empatia e entrega profundas e quando se consegue as personagens parecem-nos verdadeiras, mesmo quando uma actriz adulta faz um bebé de dois anos, porque a qualidade da relação é idêntica à da vida.
Estamos sempre a criar relação, desde a relação superficial com o rapaz do café onde vamos todos os dias até às relações mais profundas e familiares.
Mas, tal como acontece no teatro, nem sempre conseguimos manter a empatia, a escuta, a generosidade, a capacidade de entender o outro e de o aceitar como é.
Muitas vezes desistimos a meio, não sabemos bem o que queremos e por isso não investimos; temos medo de arriscar, não escutamos, damo-nos mais importância a nós mesmos do que ao outro, saímos de mansinho, afastamo-nos do que não conhecemos, tudo nos parece um ataque; não temos paciência para esperar que a relação cresça, se desenvolva; para a nutrir e ver evoluir; para aceitar todas as transformações que o curso da vida traz, inevitavelmente, a todos nós e àqueles que fazem parte dos nossos relacionamentos.
Só que na vida nem sempre podemos corrigir os erros, as nossas acções, mesmo as mais insignificantes, têm uma consequência que pode ser mais ou menos definitiva.
Criar relação nunca é fácil e por vezes também precisamos desatar os nós de relações que não nos fazem/fizeram bem.
Mas, se queremos mesmo ser pessoas, então temos de nos atirar para a relação sem confiar que “o texto” que a vida nos dá para interpretar é suficiente. Precisamos “perder” algum tempo nessa entrega e na permanente compreensão, de nós próprios e do outro, porque só assim nos espelhamos na nossa humanidade, reconhecendo que todos andamos a tentar não cair do arame onde, passo a passo, vamos colocando os pés.