"A família, a escola, os outros, todos elegem em nós uma centelha promissora, um território em que podemos brilhar. Uns nasceram para cantar, outros para dançar, outros nasceram simplesmente para serem outros. Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez.
Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios."
Mia Couto, Jesusalém
Mostrar mensagens com a etiqueta livros. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta livros. Mostrar todas as mensagens
segunda-feira, junho 29, 2009
sábado, junho 13, 2009
um coração desassossegado
"Foi numa tarde de Maio, morosa e melacólica, que a cunhada de repente lhe apareceu no Tapado.
- Andas contra o míldio?
- Tem de ser.
Houve um silêncio curto.
- As batatas estão bonitas!
- Assim, assim.
Outra pausa.
- Merendaste?
- Merendei.
- Trazia-te aqui uma pinga...
Desconfiado, fitou-a demoradamente.
- Que estás a olhar?
- Nem sei...
- Olha, olha, a ver se descobres!... Vão sendo horas...
Com a mão crispada na alavanca do pulverizador, o Daniel continuava a observá-la.
- Será possível?! - perguntou por fim.
- E então? Era alguma coisa do outro mundo?
Desabrido, atirou-lhe o nojo à cara:
- Não estás farta, mulher?
- Não.
- Pois bates a má porta. Já não te posso valer.
Duas lágrimas começaram a cair pela cara dela abaixo.
-Não é o que tu cuidas que me falta. Estou velha, também. O tempo dessas alegrias já passou.
- Então não te entendo...
- É o meu coração que não se cala. É ele que sempre gostou de ti e te queria..."
Miguel Torga, Contos da Montanha
- Andas contra o míldio?
- Tem de ser.
Houve um silêncio curto.
- As batatas estão bonitas!
- Assim, assim.
Outra pausa.
- Merendaste?
- Merendei.
- Trazia-te aqui uma pinga...
Desconfiado, fitou-a demoradamente.
- Que estás a olhar?
- Nem sei...
- Olha, olha, a ver se descobres!... Vão sendo horas...
Com a mão crispada na alavanca do pulverizador, o Daniel continuava a observá-la.
- Será possível?! - perguntou por fim.
- E então? Era alguma coisa do outro mundo?
Desabrido, atirou-lhe o nojo à cara:
- Não estás farta, mulher?
- Não.
- Pois bates a má porta. Já não te posso valer.
Duas lágrimas começaram a cair pela cara dela abaixo.
-Não é o que tu cuidas que me falta. Estou velha, também. O tempo dessas alegrias já passou.
- Então não te entendo...
- É o meu coração que não se cala. É ele que sempre gostou de ti e te queria..."
Miguel Torga, Contos da Montanha
sábado, abril 28, 2007
infidelidade
"Talvez cada dia devesse conter pelo menos uma infidelidade essencial ou uma traição necessária."
Hanif Kureishi, Intimidade
Hanif Kureishi, Intimidade
segunda-feira, fevereiro 26, 2007
vida escassa
"Com um amargo sentimento mas no fundo muito aliviada, Rosa Schwarzer sente que voltou a sumir-se no cinzento desta vida, e sente-se bem, como se tivesse compreendido que afinal não sabemos - di-lo-ei com as palavras do poeta - se na realidade as coisas não são melhor assim: propositadamente escassas. Talvez sejam melhores assim: reais, vulgares, medíocres, profundamente estúpidas. Afinal, pensa Rosa Schwarzer, aquilo não era a minha vida."
Enrique Vila-Matas
in Suicídios Exemplares
Enrique Vila-Matas
in Suicídios Exemplares
sábado, janeiro 20, 2007
pratos
"A vida é uma pilha de pratos a caírem no chão."
António Lobo Antunes, "Minuete do senhor de meia-idade"
segunda-feira, agosto 28, 2006
se alguém um dia me escrever uma carta de amor que seja assim
17-04-71
Meu amor querido
Adoro-te minha gata de Janeiro meu amor minha gazela meu miósotis minha estrela aldebaram minha amante minha Via Láctea minha filha minha mãe minha esposa minha margarida meu gerânio minha princesa aristocrática minha preta minha branca minha chinezinha minha Paulina Bonaparte minha história de fadas minha Ariana minha heroína de Racine minha ternura meu gosto de luar meu Paris minha fita de cor meu vício secreto minha torre de andorinhas três horas da manhã minha melancolia minha polpa de fruto meu diamante meu sol meu copo de água minhas Escadinhas da Saudade minha morfina ópio cocaína minha ferida aberta minha extensão polar minha floresta meu fogo minha única alegria minha América e meu Brasil minha vela acesa minha candeia minha casa meu lugar habitável minha mesa posta minha toalha de linho minha cobra minha figura de andor meu anjo de Boticelli meu mar meu feriado meu domingo de Ramos meu Setembro de vindimas meu moinho no monte meu vento norte meu sábado à noite meu diário minha história de quadradinhos meu recife de Manuel Bandeira minha Passargada meu templo grego minha colina meu verso de Holderlin meu gerânio meus olhos grandes de noite minha linda boca macia dupla como uma concha fechada meus seios suaves e carnudos meu enxuto ventre liso minhas pernas nervosas minhas unhas polidas meu longo pescoço vivo e ágil minhas palavras segredadas meu vaso etrusco minha sala de castelo espelhada meu jardim minha excitação de risos minha doce forquilha de coxas minha eterna adolescente minha pedra brunida meu pássaro no mais alto ramo da tarde meu voo de asas minha ânfora meu pão de ló minha estrada minha praia de Agosto minha luz caiada meu muro meu soluço de fonte meu lago minha Penélope meu jovem rio selvagem meu crepúsculo minha aurora entre as ruínas minha Grécia minha maré cheia minha muralha contra as ondas meu véu de noiva minha cintura meu pequenino queixo zangado minha transparência de tules minha taça de oiro minha Ofélia meu lírio meu perfume de terra meu corpo gémeo meu navio de partir minha cidade meus dentes ferozmente brancos minhas mãos sombrias minha torre de Belém meu Nilo meu Ganges meu templo hindu minha areia entre os dedos minha aurora minha harpa meu arbusto de sons meu país minha ilha minha porta para o mar meu mangerico meu cravo de papel minha Madragoa minha morte de amor minha Ana Karenine minha lâmpada de aladino minha mulher
António Lobo Antunes
in D'este viver aqui neste papel descripto: cartas de guerra
Meu amor querido
Adoro-te minha gata de Janeiro meu amor minha gazela meu miósotis minha estrela aldebaram minha amante minha Via Láctea minha filha minha mãe minha esposa minha margarida meu gerânio minha princesa aristocrática minha preta minha branca minha chinezinha minha Paulina Bonaparte minha história de fadas minha Ariana minha heroína de Racine minha ternura meu gosto de luar meu Paris minha fita de cor meu vício secreto minha torre de andorinhas três horas da manhã minha melancolia minha polpa de fruto meu diamante meu sol meu copo de água minhas Escadinhas da Saudade minha morfina ópio cocaína minha ferida aberta minha extensão polar minha floresta meu fogo minha única alegria minha América e meu Brasil minha vela acesa minha candeia minha casa meu lugar habitável minha mesa posta minha toalha de linho minha cobra minha figura de andor meu anjo de Boticelli meu mar meu feriado meu domingo de Ramos meu Setembro de vindimas meu moinho no monte meu vento norte meu sábado à noite meu diário minha história de quadradinhos meu recife de Manuel Bandeira minha Passargada meu templo grego minha colina meu verso de Holderlin meu gerânio meus olhos grandes de noite minha linda boca macia dupla como uma concha fechada meus seios suaves e carnudos meu enxuto ventre liso minhas pernas nervosas minhas unhas polidas meu longo pescoço vivo e ágil minhas palavras segredadas meu vaso etrusco minha sala de castelo espelhada meu jardim minha excitação de risos minha doce forquilha de coxas minha eterna adolescente minha pedra brunida meu pássaro no mais alto ramo da tarde meu voo de asas minha ânfora meu pão de ló minha estrada minha praia de Agosto minha luz caiada meu muro meu soluço de fonte meu lago minha Penélope meu jovem rio selvagem meu crepúsculo minha aurora entre as ruínas minha Grécia minha maré cheia minha muralha contra as ondas meu véu de noiva minha cintura meu pequenino queixo zangado minha transparência de tules minha taça de oiro minha Ofélia meu lírio meu perfume de terra meu corpo gémeo meu navio de partir minha cidade meus dentes ferozmente brancos minhas mãos sombrias minha torre de Belém meu Nilo meu Ganges meu templo hindu minha areia entre os dedos minha aurora minha harpa meu arbusto de sons meu país minha ilha minha porta para o mar meu mangerico meu cravo de papel minha Madragoa minha morte de amor minha Ana Karenine minha lâmpada de aladino minha mulher
António Lobo Antunes
in D'este viver aqui neste papel descripto: cartas de guerra
quinta-feira, agosto 03, 2006
merda
"A merda é um problema teológico mais difícil do que o mal. Deus ofereceu a liberdade ao homem e, portanto, pode admitir-se que ele não é responsável pelos crimes da humanidade. Mas a responsabilidade pela existência da merda incumbe inteiramente àquele que criou o homem, e só a ele".
Milan Kundera, "A Insustentável Leveza do Ser"
Milan Kundera, "A Insustentável Leveza do Ser"
quinta-feira, março 02, 2006
o que permanece
"A renúncia ao amor ou a plenitude do amor, ambas são extraordinárias e sem igual apenas quando a experiência inteira do amor, com todos os seus prazeres quase indestrinçáveis ( e que entre si mesmo alternam, de tal modo que a alma já não pode aqui ser separada do corpo), ocupa um lugar central: pois também aqui (no arrebatamento dos amantes ou dos homens santos de todos os tempos e de todas as religiões) a renúncia e a plenitude são já idênticas. Quando o infinito se mostra inteiro (seja como + ou como -), cai o sinal, um sinal, ah, tão humano como o caminho que agora percorremos até ao fim - e o que permanece é termos chegado, o que permanece é o ser!"
Rainer Maria Rilke
Da carta a Rudolf Bodländer, 23 de Março de 1922
(in Momentos de Paixão, Relógio d' Água)
Rainer Maria Rilke
Da carta a Rudolf Bodländer, 23 de Março de 1922
(in Momentos de Paixão, Relógio d' Água)
Subscrever:
Mensagens (Atom)