sexta-feira, novembro 25, 2011

ingenuidade






(há muito tempo que não ouvia isto. lembra-me um tempo de amores ingénuos - os primeiros, que são sempre grandes, platónicos e ingénuos - de esperanças na palma da mão, a vontade de semear futuro, o acreditar que a ideia é forma; e ao mesmo tempo, a alma a voar num corpo preso, o nó na garganta por não saber gritar, um fugir para dentro de mim por não me encontrar fora... muito se perdeu e muito se ganhou pelo caminho... intimamente ainda há um olhar puro pronto a ser resgatado, a ingenuidade das emoções intensas, agora mais à flor da pele, e uma crença quase mágica no futuro e na possibilidade do amor. pelo caminho intuí um equilíbrio entre o grito, o voo para dentro e o olhar para fora, a curiosidade pelo futuro, pelo instante em que me construo e renovo. pelo caminho morreu aquela parte de mim que se afundava no lodo, que desejava o fim; e de tanto me expor ao sol e à chuva, cresceram hastes, folhas, pétalas, uma pequena e frágil erva daninha que se agita ao vento, mas que respira vida.)

quinta-feira, novembro 24, 2011

um dever desconhecido

A minha maneira de amar-te é simples:

aperto-te a mim
como se tivesse um pouco de justiça no coração
e ta pudesse dar com o corpo

Quando te revolvo os cabelos
algo de lindo nasce das minhas mãos

E não sei quase mais nada. Aspiro apenas
a estar contigo em paz e a estar em paz
com um dever desconhecido
que às vezes me pesa também no coração.


António Gamoneda
(encontrado aqui)

memória

"(...) a memória, consiste em não deixar fugir um objecto de que se teve experiência. Ela regista e acumula todas as experiências passadas. Essa memória é muitas vezes cristalizada: tudo o que vivemos, tudo o que está à nossa volta provoca o ressurgir da memória, do passado. Então, somos invadidos anarquicamente pelos pensamentos formulados pela memória. Ela impede-nos de ver a realidade e torna-nos seus escravos, assim como escravos do passado. As tensões que daí resultam engendram o nosso ego. A memória é a energia vital do ego. Ela é um vritti doloroso.
Não somos memória, somos consciência!
Quando estamos conscientes, existimos no presente, no presente eterno, na alegria, sem futuro nem passado, novos de instante a instante. Somos, então, livres da memória. Ela já não tem o poder de nos dominar, de nos arrastar automaticamente para os seus mecanismos. Somos capazes de a consultar, de a examinar e de rectificar as suas respostas, para que elas sejam totalmente objectivas e reflictam a realidade da experiência vivida. Nestas condições o vritti não é doloroso.
Como estabilizar esta consciência?"


Georges Stobbaerts
Reflexão sobre Yoga.

sábado, novembro 19, 2011

quinta-feira, novembro 17, 2011

hidden

J-P. Witkin








"To me people were only masks. My interests would not be to reveal what the individual subject chose to hide, but instead to make the qualities of the hidden more meaningful.
J-P. Witkin





quarta-feira, novembro 16, 2011

nada acrescentes

nada acrescentes

ao vivido

não inventes

descontrai

desconstrói

o pensamento

espera

para ver

nada acrescentes

ao momento

mata o parasita

engole-o

e deixa-o sair

em nada te fixes

no bom e no mau

independe

nutre a liberdade

confia

espelha-te


vigia o coração


fala o necessário

cala o excesso

mas não guardes o medo

vai como o vento

sê a onda

respira

regressa a ti

nada te acrescentes

mas nada te impeças

acontece-te

vive-te

segunda-feira, novembro 14, 2011

o fotografo



Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim num beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada mais na existência do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda o azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Vi uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim cheguei a Nuvem de calça.
Representou pra mim que ela andava de braços com Maiakovski - seu criador.
Fotografei a Nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa mais justa para cobrir sua noiva.
A foto saiu legal.



Manoel de Barros
"Ensaios fotográficos"


terça-feira, novembro 08, 2011

descontrair

Harriet Anderesson
Summer with Monika, Ingmar Bergman





(descontrair, relaxar, deixar ir, deixar estar, não pensar, não julgar, não agir; só respirar, respirar, respirar. e em cada respiração, ser inteira; e em cada respiração receber, oferecer. descontrair, relaxar, ser. o sol toca-nos, a chuva toca-nos, o frio toca-nos. descontrair, relaxar, agir sem condicionamento. ser. )

segunda-feira, novembro 07, 2011

sou

(corro para ver o pôr do sol como quem corre para os braços de um amante. mas o tempo não me espera e quando chego, só uns restos de cor nas nuvens, reflexos breves no rio, castanho da chuva, que passa por baixo da ponte onde espreito a vida passar. a lua, do outro lado, brilha, crescente como uma promessa. uma fila de patos cruza o rio, contra a corrente, mantendo uma diagonal. as gaivotas descansam pousadas na água, ao longe. uma cegonha voa, nervosa, parece perdida, e eu estranho a sua presença no centro da cidade. acenderem as luzes nas esplanada. as árvores do parque estão finalmente com cores de outono. um homem passeia um pastor alemão. uma rapariga corre. cumprimento alguém que conheço. um pescador guarda o material. o parque está sujo com centenas de latas, garrafas de plástico, e outras porcarias que os estudantes deixaram depois da festa. olho o rio. está frio e o vento entra nos meus olhos libertando lágrimas, que, entretanto, aceito como minhas e necessárias. agradeço o dia, os dias. o meu coração abre-se e nele cabe tudo, todos. tudo o que vejo me sensibiliza. controlo-me para não me desfazer em lágrimas. cruzo os braços para não sentir frio. despeço-me do rio e do resto de sol que já se foi, deixo que a lua me acompanhe no caminho para a noite. estou viva. entrego-me ao momento. sou.)

sábado, novembro 05, 2011

quinta-feira, novembro 03, 2011

imagens

as pessoas oferecem-nos
se estivermos atentos
imagens tão belas, delicadas, profundas, trágicas, tristes, divertidas, intensas...
e eu, quando as apanho, fico com elas, a bailar na minha cabeça
a pensar na melhor maneira de cuidar delas
na melhor maneira de as devolver

devolve-las à vida
dar-lhes existência
pari-las
e mostrá-las
porque todas estas imagens
são a matéria que nos faz
humanos

por isso, recebo-as com generosidade
coloco-as, delicadamente, num local seguro
e fértil
como uma folha de papel
ou simplesmente
no meu coração
e alimento-as diariamente

para que um dia cresçam
e se exprimam
através do meu corpo
usando-me como suporte
matéria, canal

e, assim, completando-se o ciclo
nos reconheçamos de novo
irmãos, humanos, vivos.

perfeição

Nadia Comaneci, 1976



Em 1976 eu ainda era muito pequena para ter visto os jogos olímpicos e me lembrar, mas lembro-me de a ver, provavelmente nos jogos de 1980; queria ser como ela, conseguir fazer aquilo tudo (ou quase tudo, vá lá...) com o meu corpo. 
(Nessa ocasião também queria ser bailarina. Como não havia nada, mas mesmo nada, no sítio onde vivia que se parecesse com ginástica ou ballet, limitei-me a mexer-me sozinha, como me apetecia).
Mais tarde soube como os treinos eram absolutamente duros e tiranos e que muitas destas atletas ficam marcadas para o resto da vida.

Mas isto tudo a propósito de perfeição. Para mim, a perfeição era a Nadia Comaneci e a minha impossibilidade de a alcançar.
Muito cedo inculquei em mim própria que a perfeição não estava ao meu alcance. Que podia tentar aproximar-me, fazer "o meu melhor", mas que dificilmente poderia obter um "10 perfeito". 
Para me proteger das frustrações comecei, ainda em criança, a não elevar demasiado as expectativas e até a reduzi-las ao ponto de, em muitas situações, nem sequer tentar iniciar uma actividade. Meti na cabeça que todo o caminho até ao "10" estava além das minhas capacidades, então não me esforçava.

Claro que, quando uma pessoa é boa ou pelo menos eficiente a uma coisa e gosta de a fazer, tudo muda. Havia actividades, disciplinas, em que era "fácil" ser boa e, sem grande esforço, já estava a caminhar um pouco para lá do "meu melhor". Com o tempo percebi que quando gosto muito de fazer/ aprender uma coisa, instintivamente, coloco a mim própria os desafios e elevo a fasquia, não tanto para ser perfeita mas porque só assim é que o caminho se torna divertido, interessante, estimulante.
Esta última parte só assimilei completamente quando comecei a fazer teatro. Percebi que não interessa tanto querer o 10, ser a Nadia Comaneci, o que interessa é o caminho que se faz para chegar lá; e que é possível estar, nem que por pequenos instantes, nem que seja apenas uma vez na vida,  muito perto da perfeição.

No entanto, nas outras áreas "não artísticas" em que me movo e trabalho (o que equivale, infelizmente, neste momento, a 90% do meu tempo...) continuo a ter dificuldade em colocar-me desafios, a encontrar o gozo e estímulo no caminho... Creio que desisti de tentar mais do que "o meu melhor", simplesmente porque deixou de ser estimulante ir mais longe...

Por outro lado, há uma área em que os desafios são constantes, quer eu os invente ou não: a mente. O pensamento foi sempre, ao mesmo tempo, o que me perde e o que me salva. Superei, vejo agora, obstáculos duríssimos, quase só através do pensamento, da razão, da auto-análise. E da escrita que foi, durante anos, a minha única e melhor terapia.
Com a prática de meditação zen (não é a mesma coisa: pensar não é meditar) fui ultrapassando outros limites, como, por exemplo, o estado de "não-mente"; de "desapego"; de "mindfulness"; de "isto" ou de "aqui e agora". 
Pode parecer exagero mas encaro a meditação como uma espécie de desporto radical. Não se procura a perfeição, nem competir, e a própria ideia de ultrapassar limites deixa de ter qualquer sentido. 
Na meditação trata-se apenas de respirar e de ser. De ser com os outros, sem julgar, aqui e agora, sem passado, sem futuro.
O que não é nada fácil.
Por isso, quer a meditação, quer o pensamento (e consequentemente as emoções e sentimentos associados) podem produzir em mim efeitos tão intensos e radicais como um salto mortal à retaguarda.





terça-feira, novembro 01, 2011