quarta-feira, maio 20, 2009

sótão


Julie Blackmon


(no fundo, sou uma pequena fraude...)

4 comentários:

moço disse...

O TERCEIRO

Em casa da minha avó paterna
chamava-se terceiro à espécie
de arrecadação de dois andares
que ficava ao fundo de um corredor.
Era para onde fugíamos sempre
que encontrávamos a porta
aberta – e a aventura valia bem
a reprimenda. O terceiro

era arriscado e umbroso, as telhas
coavam o ar da tarde onde dançava
uma poeira lenta e muito antiga.
Grandes aranhas negras e nervosas
pareciam vigiar o que restara
da infância do meu pai
e seus irmãos: cromos das Raças

Humanas, revistas com desenhos
humorísticos onde homens e mulheres
usavam sempre chapéu. Um mundo
desaparecido, morto havia décadas –
como se a casa, na sua difícil progressão
para o futuro, se tivesse esquecido
do terceiro no passado. Bem vistas
as coisas, porém, a verdade era outra:

o terceiro adiantara-se, tinha chegado
mais cedo ao destino que aguardava
tudo o resto. A avó, a casa inteira –
e a parte de mim que lhes pertencia.
Esta relação de ausências é contrária
ao emprego das palavras. E é por isso
que eu não sei acabar este poema.

Rui Pires Cabral
Longe da Aldeia
(Averno, 2005)

turito disse...

sim... todos sabemos isso. pois. e todos andamos aqui enganados. e há alguns que não se importam.

por isso, se não te incomoda, vou passar a chamar-te minha "pequenina mentira"...
o "minha" é experimental, fica de fora (podes querer dá-lo a outra pessoa...loll...)
bj

natalie disse...

O poema é muito bonito e transportou-me para casa da minha avó paterna.

Havia um quarto onde se dormia a sesta nas longas tardes de sábado. Em cima de um armário olhava para nós um milhafre embalsamado (acho que é por isso que gosto de milhafres) que fingíamos ser assustador; no tecto, uma portinhola de madeira dava acesso ao sótão baixo, onde se guardavam tralhas; pelas frinchas da madeira páginas de revistas de banda desenhada apareciam sem que conseguíssemos arrancá-las do tecto, mesmo dando saltos na cama. Nunca dormíamos, o quarto tinha demasiadas distracções, que o escuro e a necessidade de silêncio tornavam ainda mais interessantes. A casa da minha avó era para nós, naquela altura, toda cheia de mistérios e aventuras.

natalie disse...

"pequenina mentira" é lindo!
:)