Em casa da minha avó paterna chamava-se terceiro à espécie de arrecadação de dois andares que ficava ao fundo de um corredor. Era para onde fugíamos sempre que encontrávamos a porta aberta – e a aventura valia bem a reprimenda. O terceiro
era arriscado e umbroso, as telhas coavam o ar da tarde onde dançava uma poeira lenta e muito antiga. Grandes aranhas negras e nervosas pareciam vigiar o que restara da infância do meu pai e seus irmãos: cromos das Raças
Humanas, revistas com desenhos humorísticos onde homens e mulheres usavam sempre chapéu. Um mundo desaparecido, morto havia décadas – como se a casa, na sua difícil progressão para o futuro, se tivesse esquecido do terceiro no passado. Bem vistas as coisas, porém, a verdade era outra:
o terceiro adiantara-se, tinha chegado mais cedo ao destino que aguardava tudo o resto. A avó, a casa inteira – e a parte de mim que lhes pertencia. Esta relação de ausências é contrária ao emprego das palavras. E é por isso que eu não sei acabar este poema.
sim... todos sabemos isso. pois. e todos andamos aqui enganados. e há alguns que não se importam.
por isso, se não te incomoda, vou passar a chamar-te minha "pequenina mentira"... o "minha" é experimental, fica de fora (podes querer dá-lo a outra pessoa...loll...) bj
O poema é muito bonito e transportou-me para casa da minha avó paterna.
Havia um quarto onde se dormia a sesta nas longas tardes de sábado. Em cima de um armário olhava para nós um milhafre embalsamado (acho que é por isso que gosto de milhafres) que fingíamos ser assustador; no tecto, uma portinhola de madeira dava acesso ao sótão baixo, onde se guardavam tralhas; pelas frinchas da madeira páginas de revistas de banda desenhada apareciam sem que conseguíssemos arrancá-las do tecto, mesmo dando saltos na cama. Nunca dormíamos, o quarto tinha demasiadas distracções, que o escuro e a necessidade de silêncio tornavam ainda mais interessantes. A casa da minha avó era para nós, naquela altura, toda cheia de mistérios e aventuras.
4 comentários:
O TERCEIRO
Em casa da minha avó paterna
chamava-se terceiro à espécie
de arrecadação de dois andares
que ficava ao fundo de um corredor.
Era para onde fugíamos sempre
que encontrávamos a porta
aberta – e a aventura valia bem
a reprimenda. O terceiro
era arriscado e umbroso, as telhas
coavam o ar da tarde onde dançava
uma poeira lenta e muito antiga.
Grandes aranhas negras e nervosas
pareciam vigiar o que restara
da infância do meu pai
e seus irmãos: cromos das Raças
Humanas, revistas com desenhos
humorísticos onde homens e mulheres
usavam sempre chapéu. Um mundo
desaparecido, morto havia décadas –
como se a casa, na sua difícil progressão
para o futuro, se tivesse esquecido
do terceiro no passado. Bem vistas
as coisas, porém, a verdade era outra:
o terceiro adiantara-se, tinha chegado
mais cedo ao destino que aguardava
tudo o resto. A avó, a casa inteira –
e a parte de mim que lhes pertencia.
Esta relação de ausências é contrária
ao emprego das palavras. E é por isso
que eu não sei acabar este poema.
Rui Pires Cabral
Longe da Aldeia
(Averno, 2005)
sim... todos sabemos isso. pois. e todos andamos aqui enganados. e há alguns que não se importam.
por isso, se não te incomoda, vou passar a chamar-te minha "pequenina mentira"...
o "minha" é experimental, fica de fora (podes querer dá-lo a outra pessoa...loll...)
bj
O poema é muito bonito e transportou-me para casa da minha avó paterna.
Havia um quarto onde se dormia a sesta nas longas tardes de sábado. Em cima de um armário olhava para nós um milhafre embalsamado (acho que é por isso que gosto de milhafres) que fingíamos ser assustador; no tecto, uma portinhola de madeira dava acesso ao sótão baixo, onde se guardavam tralhas; pelas frinchas da madeira páginas de revistas de banda desenhada apareciam sem que conseguíssemos arrancá-las do tecto, mesmo dando saltos na cama. Nunca dormíamos, o quarto tinha demasiadas distracções, que o escuro e a necessidade de silêncio tornavam ainda mais interessantes. A casa da minha avó era para nós, naquela altura, toda cheia de mistérios e aventuras.
"pequenina mentira" é lindo!
:)
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