segunda-feira, dezembro 28, 2015
A Chave do Desejo
"Todos os desejos são contraditórios como o do alimento. Gostaria que aquele que amo me amasse. Mas se ele me for totalmente dedicado, deixa de existir, e eu deixo de o amar. E enquanto não me for totalmente dedicado, não me amará o suficiente. Fome e saciedade. O desejo é mau e ilusório, mas, no entanto, sem o desejo não esquadrinharíamos o verdadeiro absoluto, o verdadeiro ilimitado. É preciso ter passado por isto. Infelizes os seres a quem o cansaço subtrai esta energia suplementar que é a fonte do desejo. Infeliz, também, aquele a quem o desejo cega. É preciso arrastar o desejo até ao eixo dos pólos."
Simone Weil, "A Gravidade e a Graça"
terça-feira, dezembro 22, 2015
terça-feira, dezembro 01, 2015
quinta-feira, novembro 26, 2015
desvanecer
deve haver um poema sobre a desilusão
não me lembro, mas deve haver
não me lembro, mas alguém terá já dito
desta sensação de peso e tristeza vaga
não o coração partido, não é isso
o coração parte-se porque ainda espera
antes a constatação da mudança
da amizade que desvanece
já nada esperar, é o que dói
perdemos pessoas constantemente
perdemos-nos a nós
porque mudamos
mas há mudanças que custam mais
desiludem mais
já deve haver um poema sobre isto
não me lembro, deve haver
os despojos da amizade
as cinzas que ainda escondem o horizonte
que sejam cinzas e assentem
abrindo espaço para o encontro.
sexta-feira, novembro 20, 2015
domingo, novembro 15, 2015
brilha
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não: brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas. Mas brilha.
Não na distância.
Aqui no meio de nós.
Brilha.
Jorge de Sena
sexta-feira, novembro 13, 2015
segunda-feira, novembro 09, 2015
blazer azul
"Gostas de mim?"
Perguntei ao blazer azul.
Sem resposta.
O silêncio saiu ruidosamente dos seus livros.
O silêncio caiu da sua língua
e sentou-se entre nós.
e obstruiu a minha garganta.
E trucidou a minha confiança.
Despedaçou cigarros para fora da minha boca.
Trocámos palavras cegas,
e eu não chorei,
e eu não implorei,
mas a escuridão encheu os meus ouvidos,
a escuridão atacou o meu coração,
e algo que tinha sido bom,
uma espécie de oxigénio bondoso,
Transformou-se em gás de forno.
Perguntei ao blazer azul.
Sem resposta.
O silêncio saiu ruidosamente dos seus livros.
O silêncio caiu da sua língua
e sentou-se entre nós.
e obstruiu a minha garganta.
E trucidou a minha confiança.
Despedaçou cigarros para fora da minha boca.
Trocámos palavras cegas,
e eu não chorei,
e eu não implorei,
mas a escuridão encheu os meus ouvidos,
a escuridão atacou o meu coração,
e algo que tinha sido bom,
uma espécie de oxigénio bondoso,
Transformou-se em gás de forno.
"Gostas de mim?"
Que absurdo!
Que raio de pergunta é essa?
Que raio de silencio é esse?
E porque é que eu ando a rondar,
intrigada com o que é que o silêncio dele disse?
Que absurdo!
Que raio de pergunta é essa?
Que raio de silencio é esse?
E porque é que eu ando a rondar,
intrigada com o que é que o silêncio dele disse?
Anne Sexton
( tradução Maria Sousa)
( tradução Maria Sousa)
domingo, novembro 08, 2015
quinta-feira, novembro 05, 2015
respostas
ainda que todas as respostas viessem
acordar-me deste sono
continuaria sem compreender
o que nos separa
(a lua está lá, se não olharmos para ela?)
sábado, outubro 31, 2015
o que dói
dói mais a impossibilidade de me dar
do que o vazio de não receber
(não foi de repente que se acabou a poesia. fios tecidos entre o tempo das viagens. teias estereis a ocupar os cantos da casa. o vazio das chávenas em cacos. um livro aberto que nunca se leu. a memória como fantasma. e a hera que entra pelas janelas, reclamando vida num espaço morto.)
do que o vazio de não receber
(não foi de repente que se acabou a poesia. fios tecidos entre o tempo das viagens. teias estereis a ocupar os cantos da casa. o vazio das chávenas em cacos. um livro aberto que nunca se leu. a memória como fantasma. e a hera que entra pelas janelas, reclamando vida num espaço morto.)
terça-feira, outubro 13, 2015
quinta-feira, outubro 08, 2015
terça-feira, setembro 29, 2015
segunda-feira, setembro 14, 2015
quero a alegria de um barco voltando
Hoje eu quero a rosa mais linda que houver
E a primeira estrela que vier
Para enfeitar a noite do meu bem
Hoje eu quero paz de criança dormindo
E abandono de flores se abrindo
Para enfeitar a noite do meu bem
Quero a alegria de um barco voltando
Quero ternura de irmãos se encontrando
Para enfeitar a noite do meu bem
Ah! eu quero o amor, o amor mais profundo
Eu quero toda beleza do mundo
Para enfeitar a noite do meu bem
Ah! como este bem demorou a chegar
Eu já nem sei se terei no olhar
Toda pureza que eu quero lhe dar
segunda-feira, agosto 31, 2015
segunda-feira, agosto 17, 2015
sábado, agosto 15, 2015
quarta-feira, agosto 12, 2015
devagar
CONVIDA-ME SÓ PARA JANTAR
E não queiras depois fazer amor.
Convida-me só para jantar
num restaurante sossegado
numa mesa de canto
e fala devagar
e fala devagar
eu quero comer sopa quente
não quero comer mariscos
os mariscos atravancam-me o prato
e estou cansada para os afastar
fala assim devagar
devagar
não é preciso dizeres que sou bonita
mas não me fales de economia e de política
fala assim devagar
devagar
deita-me o vinho devagar
quando o meu copo já estiver vazio.
Estou convalescente
sou convalescente
não é preciso que o percebas
mas por favor não faças força em mim.
Fala, estás-me a dar de jantar
estás-me a pôr recostada à almofada
estás-me a fazer sorrir ao longe
fala assim devagar
devagar
devagar.
Convida-me só para jantar
num restaurante sossegado
numa mesa de canto
e fala devagar
e fala devagar
eu quero comer sopa quente
não quero comer mariscos
os mariscos atravancam-me o prato
e estou cansada para os afastar
fala assim devagar
devagar
não é preciso dizeres que sou bonita
mas não me fales de economia e de política
fala assim devagar
devagar
deita-me o vinho devagar
quando o meu copo já estiver vazio.
Estou convalescente
sou convalescente
não é preciso que o percebas
mas por favor não faças força em mim.
Fala, estás-me a dar de jantar
estás-me a pôr recostada à almofada
estás-me a fazer sorrir ao longe
fala assim devagar
devagar
devagar.
Ana Goês
segunda-feira, agosto 10, 2015
quarta-feira, agosto 05, 2015
príncipe
Príncipe:
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito tudo era apenas
lábios pálpebras intumescências
cobrindo o corpo de flutuantes volteios
de palpitações trémulas adejando pelo rosto.
Beijava os teus olhos por dentro
beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão sobre o meu pensamento
corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.
São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me.
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me.
Ana Hatherly 1929 - 2015
segunda-feira, agosto 03, 2015
FIO
É duro escrever.
O silêncio do quarto
alimenta a dúvida
alimenta a dúvida
e o poema é ainda
um novelo
um novelo
de vidro: pode partir-se
e perder-se
e perder-se
entre coisas avulsas
do dia. Para quê,
do dia. Para quê,
para quem, de que vale
e ao que vem
e ao que vem
esse fio de voz
ressentida? Não sei,
ressentida? Não sei,
por enquanto
ainda corre -
ainda corre -
mas é duro escrever
contra a parte de mim
contra a parte de mim
que me manda calar
e esquecer.
e esquecer.
Rui Pires Cabral
sábado, julho 25, 2015
quinta feira
VEM À QUINTA-FEIRA
É quase fim-de-semana e podemos, talvez, beber uma cerveja
ao cair da tarde, enquanto planeamos a viagem a Paris. E se Paris
for muito caro - sei que isto não está fácil - podemos ir a Guimarães
assistir a um concerto, que ouvir é a maneira mais pura de calar.
ao cair da tarde, enquanto planeamos a viagem a Paris. E se Paris
for muito caro - sei que isto não está fácil - podemos ir a Guimarães
assistir a um concerto, que ouvir é a maneira mais pura de calar.
Vem à Quinta-feira.
A seguir, temos ainda a Sexta e talvez me esperes à porta do emprego,
e talvez fiques para Sábado e Domingo, e talvez o mundo pare
de acabar tão depressa.
e talvez fiques para Sábado e Domingo, e talvez o mundo pare
de acabar tão depressa.
Vem à Quinta-feira.
Mas não venhas nesta, vem na próxima.
Nesta, tenho um compromisso que não posso adiar, é um compromisso
profissional - sabes que isto não está fácil - e talvez nos dê hipótese de irmos
a Paris ou a Guimarães. Vem na próxima, que eu preciso de tempo
para arranjar o cabelo, para arranjar o coração,
para elaborar a lista do que me falta fazer contigo.
Mas não venhas nesta, vem na próxima.
Nesta, tenho um compromisso que não posso adiar, é um compromisso
profissional - sabes que isto não está fácil - e talvez nos dê hipótese de irmos
a Paris ou a Guimarães. Vem na próxima, que eu preciso de tempo
para arranjar o cabelo, para arranjar o coração,
para elaborar a lista do que me falta fazer contigo.
Vem à Quinta-feira e não te demores.
Enquanto te escrevo, já fui elaborando a lista
(sabes como gosto de pensar em tudo
ao mesmo tempo)
e afinal o que me falta fazer contigo
não é caro:
- viajar de auto-caravana,
- dançar pela Estrada Nacional,
- ver-te chorar.
Choras tão pouco. Ainda bem que estás contente.
Enquanto te escrevo, já fui elaborando a lista
(sabes como gosto de pensar em tudo
ao mesmo tempo)
e afinal o que me falta fazer contigo
não é caro:
- viajar de auto-caravana,
- dançar pela Estrada Nacional,
- ver-te chorar.
Choras tão pouco. Ainda bem que estás contente.
Vem à Quinta-feira.
Se não pudermos ir a Paris ou a Guimarães, não te preocupes.
Vem na mesma, que eu vou apanhando as canas-da-índia, as fiteiras,
eu vou recolhendo a palha e reunindo cordas e lona.
Já estive a aprender no Youtube como se faz uma cabana.
Vem na mesma, que eu vou procurando um lugar seguro.
Vem na mesma porque a cabana, como a casa, só funciona com amor
- ou, pelo menos, é o que diz o Youtube.
Vem na mesma, que eu vou apanhando as canas-da-índia, as fiteiras,
eu vou recolhendo a palha e reunindo cordas e lona.
Já estive a aprender no Youtube como se faz uma cabana.
Vem na mesma, que eu vou procurando um lugar seguro.
Vem na mesma porque a cabana, como a casa, só funciona com amor
- ou, pelo menos, é o que diz o Youtube.
Temos ainda tanto para fazer.
Por isso, se algum dia voltares, meu amor, volta numa Quinta.
Por isso, se algum dia voltares, meu amor, volta numa Quinta.
Filipa Leal
terça-feira, julho 21, 2015
terça-feira, julho 14, 2015
ligações
Ilustrações de George Barbier
"(...) Entretanto, o Cavaleiro chega à minha porta, com o mesmo ardor de sempre. O porteiro não o deixa entrar e diz-lhe que estou doente: primeiro incidente. Ao mesmo tempo, entrega-lhe uma missiva minha - não escrita pela minha mão, segundo o meu hábito. Abre-a e lê o seguinte - escrito pela mão de Victoire: "Às nove em ponto, no bulevar, diante dos cafés." Dirige-se para lá; quando chega, um pequeno lacaio, que não conhece ou supõe não conhecer, pois continua a ser Victoire, anuncia-lhe que deve reenviar a carruagem e segui-lo. Todo aquele caminho romanesco vai-lhe aquecendo a cabeça, e a cabeça quente nunca foi prejudicial, nestes casos. Por fim, ei-lo chegado, e a surpresa, assim como o amor, provocam nele um verdadeiro encantamento. (...)
Como dispúnhamos de seis horas para passarmos juntos e porque eu também decidira que todo esse tempo fosse para ele delicioso, moderei os seus transportes e a amável coqueteria substituiu a ternura. Penso nunca ter feito tantos esforços para agradar nem nunca ter ficado tão satisfeita comigo mesma. Depois do jantar, ora acriançada e razoável, ora folgazona e sensível, por vezes mesmo libertina, diverti-me a tratá-lo como um sultão no seu harém, onde eu ia desempenhando, sucessivamente, os papeis das várias favoritas. Efectivamente, as suas repetidas homenagens, embora sempre recebidas pela mesma mulher, foram-no sempre por uma amante diferente.
Por fim, ao nascer do dia, chegou o momento da separação; e, apesar do que dizia e fazia para me provar o contrário, ele tinha tanta necessidade disso como pouca vontade de me deixar. (...) "
As Ligações, Perigosas, Carta 10, Da Marquesa de Merteuil para o Visconde de Valmont, Pierre Chordelos de Laclos.
terça-feira, junho 16, 2015
necessária
Divagação sobre a palavra dormir
Gostava de te olhar a dormir
mesmo que isso nunca aconteça.
Gostava de te olhar,
a dormir. Gostava de dormir
contigo, entrar
no teu sono, sentir seu fluxo suave e nebuloso
a deslizar sobre a minha cabeça
mesmo que isso nunca aconteça.
Gostava de te olhar,
a dormir. Gostava de dormir
contigo, entrar
no teu sono, sentir seu fluxo suave e nebuloso
a deslizar sobre a minha cabeça
e caminhar contigo nessa floresta luminosa
ondulante de folhas fluorescentes
com um sol aquoso e três luas
até à caverna onde terás que descer,
em direcção ao teu pior medo
ondulante de folhas fluorescentes
com um sol aquoso e três luas
até à caverna onde terás que descer,
em direcção ao teu pior medo
Gostava de te oferecer o ramal de prata,
a pequenina flor branca, aquela
palavra que te protegerá
da dor a meio
do teu sonho, do desgosto
central. Gostava de te acompanhar
até ao cimo da longa escadaria
mais uma vez e de ser
o barco para te transportar de volta
com cuidado, uma chama
entre duas mãos em concha
onde o teu corpo se deita
ao lado do meu, e tal como nele entras
com a facilidade com que se respira
a pequenina flor branca, aquela
palavra que te protegerá
da dor a meio
do teu sonho, do desgosto
central. Gostava de te acompanhar
até ao cimo da longa escadaria
mais uma vez e de ser
o barco para te transportar de volta
com cuidado, uma chama
entre duas mãos em concha
onde o teu corpo se deita
ao lado do meu, e tal como nele entras
com a facilidade com que se respira
Gostava de ser o ar
que te habita durante um breve
momento. Gostava de ser tão imperceptível
e tão necessária.
que te habita durante um breve
momento. Gostava de ser tão imperceptível
e tão necessária.
Margaret Atwood, tradução de Ana Teixeira
domingo, junho 07, 2015
quinta-feira, maio 14, 2015
decido eu.
Não digas ao que vens. Deixa-me
adivinhar pelo pó nos teus cabelos
que vento te mandou. É longe a
tua casa? Dou-te a minha: leio nos
adivinhar pelo pó nos teus cabelos
que vento te mandou. É longe a
tua casa? Dou-te a minha: leio nos
teus olhos o cansaço do dia que te
venceu; e, no teu rosto, as sombras
contam-me o rosto da viagem. Anda,
venceu; e, no teu rosto, as sombras
contam-me o rosto da viagem. Anda,
vem repousar os martírios da estrada
nas curvas do meu corpo — é um
destino sem dor e sem memória. Tens
nas curvas do meu corpo — é um
destino sem dor e sem memória. Tens
sede? Sobra da tarde apenas uma
fatia de laranja — morde-a na minha
boca sem pedires. Não, não me digas
quem és nem ao que vens. Decido eu.
fatia de laranja — morde-a na minha
boca sem pedires. Não, não me digas
quem és nem ao que vens. Decido eu.
Maria do Rosário Pedreira
terça-feira, abril 07, 2015
quarta-feira, abril 01, 2015
domingo, março 29, 2015
ansiedade
...é mais ou menos isto:
http://snapdraws.tumblr.com/post/50082858616/apologies-for-the-terrible-image-quality-im
(com o tempo e muito trabalho interior vamos aprendendo a controlar alguns pensamentos intrusivos, e consegue-se desdramatizar o dia a dia, principalmente quando se consegue recorrer ao humor. mas há ciclos, momentos em que somos lembrados que ela está aí, como um braço mais curto, ou um outro qualquer handicap.
sim, é por isso que pareço sempre um pouco tensa, que parece que dou importância a coisas insignificantes.
mas, sabes, uma pessoa como eu é mesmo assim. :) a única coisa a fazer é aceitar. e estar vigilante. sempre. cansa muito.
é mais fácil perceber um problema físico, o tal braço mais curto que não chega onde queremos, mas é visível para todos e por isso não precisamos explicar nada. com a ansiedade ou a depressão é diferente. ninguém vê. e dar-lhe visibilidade implica falar no que se sente, o que pode ser pesado, aborrecido para os outros.
é por isso que calamos. e ficamos mais tristes.
aceitar é a chave.
mas sinto às vezes que não basta eu aceitar.
perceber que os outros (me) aceitam também faz falta.)
http://snapdraws.tumblr.com/post/50082858616/apologies-for-the-terrible-image-quality-im
(com o tempo e muito trabalho interior vamos aprendendo a controlar alguns pensamentos intrusivos, e consegue-se desdramatizar o dia a dia, principalmente quando se consegue recorrer ao humor. mas há ciclos, momentos em que somos lembrados que ela está aí, como um braço mais curto, ou um outro qualquer handicap.
sim, é por isso que pareço sempre um pouco tensa, que parece que dou importância a coisas insignificantes.
mas, sabes, uma pessoa como eu é mesmo assim. :) a única coisa a fazer é aceitar. e estar vigilante. sempre. cansa muito.
é mais fácil perceber um problema físico, o tal braço mais curto que não chega onde queremos, mas é visível para todos e por isso não precisamos explicar nada. com a ansiedade ou a depressão é diferente. ninguém vê. e dar-lhe visibilidade implica falar no que se sente, o que pode ser pesado, aborrecido para os outros.
é por isso que calamos. e ficamos mais tristes.
aceitar é a chave.
mas sinto às vezes que não basta eu aceitar.
perceber que os outros (me) aceitam também faz falta.)
sexta-feira, março 27, 2015
quinta-feira, março 26, 2015
paixão
li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
musica,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguirem-se da terra,
os grandes poemas desaparecerem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
¿e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afaste de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluído, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que eu ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela,
a paixão grega.
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
musica,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguirem-se da terra,
os grandes poemas desaparecerem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
¿e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afaste de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluído, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que eu ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela,
a paixão grega.
Herberto Helder
in A faca não Corta o Fogo
sábado, março 21, 2015
Nomear-te
Não o poema da tua ausência,
somente o esboço, uma fissura num muro,
algo no vento, um sabor amargo.
Alejandra Pizarnik
quarta-feira, março 18, 2015
pechisbeque
(...)"Já por várias vezes falámos sobre a imagem que os outros têm de mim e a imagem que eu própria traço da minha pessoa. Qual é a imagem autêntica? A verdadeira? Não sei, só sei que, quase sempre, me sinto um embuste, uma peça de fancaria, um anelzinho de pechisbeque, daqueles que, pelo uso, rapidamente perdem o dourado e ganham a cor verdoenga do bolor. "
http://ana-de-amsterdam.blogspot.pt/2015/03/bolor.html
(...tantas vezes me sinto assim, uma pequena fraude...)
terça-feira, março 10, 2015
A NOSSA VEZ
É o frio que nos tolhe ao domingo
no inverno, quando mais rareia
a esperança. São certas fixações
da consciência, coisas que andam
pela casa à procura de um lugar
no inverno, quando mais rareia
a esperança. São certas fixações
da consciência, coisas que andam
pela casa à procura de um lugar
e entram clandestinas no poema.
São os envelopes da companhia
da água, a faca suja de manteiga
na toalha, esse trilho que deixamos
atrás de nós e se decifra sem esforço
nem proveito. É a espera
São os envelopes da companhia
da água, a faca suja de manteiga
na toalha, esse trilho que deixamos
atrás de nós e se decifra sem esforço
nem proveito. É a espera
e a demora. São as ruas sossegadas
à hora do telejornal e os talheres
da vizinhança a retinir. É a deriva
nocturna da memória: é o medo
de termos perdido sem querer
à hora do telejornal e os talheres
da vizinhança a retinir. É a deriva
nocturna da memória: é o medo
de termos perdido sem querer
a nossa vez.
Rui Pires Cabral
quinta-feira, março 05, 2015
litania
Estava sentado numa sala anexa ao bloco operatório
e uma enfermeira passou com o teu útero num saco de plástico
transparente
Com o teu útero com a minha primeira casa e a de meus irmãos
ainda escorrendo sangue
Uma pequena construção toda em pedra
com divisões de tijolo e cal hidráulica
e janelas abrindo para o vale
Com o teu útero
Com a memória do pão depois de levedado e da tua saia comprida
cheia de farinha
Com a memória de uma gema de ovo
Com o teu útero
Com a memória de uns sapatos demasiado apertados
Com a memória do giz e do ferro a carvão e dos alinhavos
na minha alma antes de ser posta à prova
Com o teu útero
Com a memória de uma véspera de Natal das rabanadas e da aletria
e das águas que de súbito inundaram o soalho da cozinha
Com a memória agitada dessas águas
Com o teu útero
Com a memória de uma explosão de mimosas
Com a memória do cheiro a flor de laranjeira e a néroli
Com o teu útero
Que o anatomo-patologista dentro em pouco se encarregaria de
retalhar
com a lâmina do bisturi
e uma enfermeira passou com o teu útero num saco de plástico
transparente
Com o teu útero com a minha primeira casa e a de meus irmãos
ainda escorrendo sangue
Uma pequena construção toda em pedra
com divisões de tijolo e cal hidráulica
e janelas abrindo para o vale
Com o teu útero
Com a memória do pão depois de levedado e da tua saia comprida
cheia de farinha
Com a memória de uma gema de ovo
Com o teu útero
Com a memória de uns sapatos demasiado apertados
Com a memória do giz e do ferro a carvão e dos alinhavos
na minha alma antes de ser posta à prova
Com o teu útero
Com a memória de uma véspera de Natal das rabanadas e da aletria
e das águas que de súbito inundaram o soalho da cozinha
Com a memória agitada dessas águas
Com o teu útero
Com a memória de uma explosão de mimosas
Com a memória do cheiro a flor de laranjeira e a néroli
Com o teu útero
Que o anatomo-patologista dentro em pouco se encarregaria de
retalhar
com a lâmina do bisturi
Jorge Sousa Braga
segunda-feira, março 02, 2015
segunda-feira, fevereiro 23, 2015
sem sentido
vaguear no deserto, a cor azul, três estrelas de orion, poemas partidos, fissuras fistulas fracturas,
mármore ao léu
o susto do frio, alcatrão molhado, lencóis desterrados
sangue esperma cuspe, música madrugada
escadas para o nada
não se pode passar, vazio interrompido, o longe é aqui
partir para partir
dois bocados, mil pedaços, morrer sem morrer
acordar, acordai
sede de mar, ponte, monte
fluido, cor de rosa, inchaço
beijo na bochecha, frágil filigrana, fica, fica
se amor não me engana
vaguear, vaguear, deserto, palavra, acção
suor, caminho, susto, intensa, intensa
a mão
orion, deserto, estrelas, poemas rasgados
o céu, fístula aberta, companhia, cicatriz
azul na terra
intensa, aberta
solidão.
quinta-feira, fevereiro 19, 2015
domingo, fevereiro 15, 2015
assertividade
esta semana estive a "ensinar" uma pessoa a não ter medo de parecer mal-educada por querer simplesmente defender os seus interesses e vontades.
disse-lhe que, por vezes, é mesmo necessário ser um pouco "mal-educada" para garantir firmeza perante uma outra parte que se está nas tintas para o que estamos a dizer, que só pensa em si mesma.
que principalmente as mulheres, mas não só, são educadas para agradar e ceder, para não ficar mal perante os outros, e que quando quebramos esse padrão é normal que nos sintamos mal ou diferentes ou "mal-educadas".
no entanto, há mesmo muita gente que acha que está a ser assertiva e está só a ser mal-educada, ou rude. há quem ache que está só a dizer o que pensa e está a ser grosseira. há quem ache que está a fazer um comentário crítico e está simplesmente a saltar conclusões.
recentemente fizeram-me um comentário que poderia ser confundido com assertividade mas foi simples má-educação baseada em inferências incorrectas.
a meu favor, consegui resistir à tentação de justificar e corrigir a falácia.
mas ainda tenho de fazer muitas "respirações" para evitar dar informação a mais a quem não merece sequer saber o meu nome do meio.
enfim.
disse-lhe que, por vezes, é mesmo necessário ser um pouco "mal-educada" para garantir firmeza perante uma outra parte que se está nas tintas para o que estamos a dizer, que só pensa em si mesma.
que principalmente as mulheres, mas não só, são educadas para agradar e ceder, para não ficar mal perante os outros, e que quando quebramos esse padrão é normal que nos sintamos mal ou diferentes ou "mal-educadas".
no entanto, há mesmo muita gente que acha que está a ser assertiva e está só a ser mal-educada, ou rude. há quem ache que está só a dizer o que pensa e está a ser grosseira. há quem ache que está a fazer um comentário crítico e está simplesmente a saltar conclusões.
recentemente fizeram-me um comentário que poderia ser confundido com assertividade mas foi simples má-educação baseada em inferências incorrectas.
a meu favor, consegui resistir à tentação de justificar e corrigir a falácia.
mas ainda tenho de fazer muitas "respirações" para evitar dar informação a mais a quem não merece sequer saber o meu nome do meio.
enfim.
terça-feira, fevereiro 10, 2015
sexta-feira, janeiro 30, 2015
quarta-feira, janeiro 28, 2015
segunda-feira, janeiro 26, 2015
quinta-feira, janeiro 15, 2015
provavelmente
Provavelmente noutro tempo,
noutras circunstâncias
chegaríamos a iguais resultados
pelo que de nada adianta
imaginar um almagesto
ou tabelas de paralaxe para
isto
a que convencionalmente
chamamos amor,
nem calcular o ângulo
entre nós e o centro da terra,
de nada nos aproveitara, tu e
eu
centros escorraçados de
irregular gravitação.
Porém, isso não me impediu de ver plêiades
cada vez que surgias (só
não te dizia nada) plêiades
iluminando
meu Hades
com suas cabrinhas coruscantes
pascendo
o vale da sombra da morte.
E a questão hoje é: who’s gonna drive you home tonight?
quando o melancólico transístor
destila também outras
perguntas, mas nenhuma
tão dura quanto essa,
por exemplo: porque é que a
água tem mais tendência
a subir em tubos estreitos
ao contrário do mercúrio?
Isto é view-master e são coisas que faço
na tua ausência.
Daniel Jonas, Os fantasmas
inquilinos, Lisboa: Livros
Cotovia, 2005
https://asfolhasardem.wordpress.com
segunda-feira, janeiro 12, 2015
palimpsesto
quando eu nasci a minha avó (paterna) tinha 42 anos, a idade que eu tenho agora.
era uma avó jovem, com os três filhos já adultos, dois deles já casados na ocasião.
depois de eu nascer ela foi e fez tantas coisas, que quando a vejo agora, frágil, enrugada, reconheço o palimpsesto que foi sempre a sua vida, com mudanças e desafios a todo o momento.
lembro-me quando tirou a carta de condução, e como enfrentava o preconceito; lembro-me de a ver sempre activa, sempre a pensar, a antecipar e a resolver problemas.
lembro-me de ir apanhar figos e nozes e maçãs e ameixas e cerejas e azeitonas com ela; de ir apanhar musgo para o presépio, bugalhos e azevinho.
lembro-me das viagens de comboio, de passar na ponte D. Maria Pia, no Porto, e de olharmos lá para baixo e sentirmos tudo a tremer.
lembro-me das noites de sueca, whisky e tabaco; da garrafa de aguardente; da fruteira com maçãs, do galheteiro e dos dentes de alho, dos peixinhos de escabeche, do coelho guisado, da marmelada e do leite creme.
e lembro-me de a ouvir falar de antes, do tempo em que eu ainda não a conhecia, das suas ambições, vontades, sonhos. do que fez, do que não conseguiu fazer, do que nunca sonhou conseguir e fez.
e ao lembrar-me percebo a quantidade de vidas que cabe na vida de uma pessoa, que nada nunca é estático, que nos compete aprender e crescer com as mudanças, mesmo que nem sempre sejam as desejadas.
tenho hoje a idade que a minha avó tinha quando eu nasci.
tantas vidas, desafios, mudanças ainda me esperam.
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