segunda-feira, dezembro 28, 2015


A Chave do Desejo


"Todos os desejos são contraditórios como o do alimento. Gostaria que aquele que amo me amasse. Mas se ele me for totalmente dedicado, deixa de existir, e eu deixo de o amar. E enquanto não me for totalmente dedicado, não me amará o suficiente. Fome e saciedade. O desejo é mau e ilusório, mas, no entanto, sem o desejo não esquadrinharíamos o verdadeiro absoluto, o verdadeiro ilimitado. É preciso ter passado por isto. Infelizes os seres a quem o cansaço subtrai esta energia suplementar que é a fonte do desejo. Infeliz, também, aquele a quem o desejo cega. É preciso arrastar o desejo até ao eixo dos pólos."

Simone Weil, "A Gravidade e a Graça"

terça-feira, dezembro 22, 2015

terça-feira, dezembro 01, 2015

quinta-feira, novembro 26, 2015

desvanecer



deve haver um poema sobre a desilusão
não me lembro, mas deve haver

não me lembro, mas alguém terá já dito
desta sensação de peso e tristeza vaga

não o coração partido, não é isso
o coração parte-se porque ainda espera

antes a constatação da mudança
da amizade que desvanece

já nada esperar, é o que dói

perdemos pessoas constantemente
perdemos-nos a nós
porque mudamos

mas há mudanças que custam mais
desiludem mais

já deve haver um poema sobre isto
não me lembro, deve haver

os despojos da amizade
as cinzas que ainda escondem o horizonte

que sejam cinzas e assentem
abrindo espaço para o encontro.



sexta-feira, novembro 20, 2015

domingo, novembro 15, 2015

brilha




Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não: brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas. Mas brilha.
Não na distância. 
Aqui no meio de nós.
Brilha. 



Jorge de Sena

sexta-feira, novembro 13, 2015

segunda-feira, novembro 09, 2015

blazer azul



"Gostas de mim?"
Perguntei ao blazer azul.
Sem resposta.
O silêncio saiu ruidosamente dos seus livros.
O silêncio caiu da sua língua
e sentou-se entre nós.
e obstruiu a minha garganta.
E trucidou a minha confiança.
Despedaçou cigarros para fora da minha boca.
Trocámos palavras cegas,
e eu não chorei,
e eu não implorei,
mas a escuridão encheu os meus ouvidos,
a escuridão atacou o meu coração,
e algo que tinha sido bom,
uma espécie de oxigénio bondoso,
Transformou-se em gás de forno.
"Gostas de mim?"
Que absurdo!
Que raio de pergunta é essa?
Que raio de silencio é esse?
E porque é que eu ando a rondar,
intrigada com o que é que o silêncio dele disse?

Anne Sexton
( tradução Maria Sousa)

domingo, novembro 08, 2015

quinta-feira, novembro 05, 2015

impacto


Veselin Malinov

respostas


ainda que todas as respostas viessem
acordar-me deste sono

continuaria sem compreender
o que nos separa


(a lua está lá, se não olharmos para ela?)



sábado, outubro 31, 2015

o que dói

dói mais a impossibilidade de me dar

do que o vazio de não receber


(não foi de repente que se acabou a poesia. fios tecidos entre o tempo das viagens. teias estereis a ocupar os cantos da casa. o vazio das chávenas em cacos. um livro aberto que nunca se leu. a memória como fantasma. e a hera que entra pelas janelas, reclamando vida num espaço morto.)

terça-feira, outubro 13, 2015

arejar


Peter Marlow

quinta-feira, outubro 08, 2015

lovers


"Lovers and Lautrec”, Joseph Lorusso

terça-feira, setembro 29, 2015

segunda-feira, setembro 14, 2015

quero a alegria de um barco voltando

Hoje eu quero a rosa mais linda que houver E a primeira estrela que vier Para enfeitar a noite do meu bem Hoje eu quero paz de criança dormindo E abandono de flores se abrindo Para enfeitar a noite do meu bem Quero a alegria de um barco voltando Quero ternura de irmãos se encontrando Para enfeitar a noite do meu bem Ah! eu quero o amor, o amor mais profundo Eu quero toda beleza do mundo Para enfeitar a noite do meu bem Ah! como este bem demorou a chegar Eu já nem sei se terei no olhar Toda pureza que eu quero lhe dar

segunda-feira, agosto 31, 2015

segunda-feira, agosto 17, 2015




Marta Zubyk

sábado, agosto 15, 2015

quarta-feira, agosto 12, 2015

devagar

CONVIDA-ME SÓ PARA JANTAR

E não queiras depois fazer amor.
Convida-me só para jantar
num restaurante sossegado
numa mesa de canto
e fala devagar
e fala devagar
eu quero comer sopa quente
não quero comer mariscos
os mariscos atravancam-me o prato
e estou cansada para os afastar
fala assim devagar
devagar
não é preciso dizeres que sou bonita
mas não me fales de economia e de política
fala assim devagar
devagar
deita-me o vinho devagar
quando o meu copo já estiver vazio.
Estou convalescente
sou convalescente
não é preciso que o percebas
mas por favor não faças força em mim.
Fala, estás-me a dar de jantar
estás-me a pôr recostada à almofada
estás-me a fazer sorrir ao longe
fala assim devagar
devagar
devagar.


Ana Goês

segunda-feira, agosto 10, 2015

quarta-feira, agosto 05, 2015

príncipe

Príncipe: 

Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito tudo era apenas
lábios pálpebras intumescências
cobrindo o corpo de flutuantes volteios
de palpitações trémulas adejando pelo rosto.
Beijava os teus olhos por dentro
beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão sobre o meu pensamento
corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.
São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me.




 Ana Hatherly 1929 - 2015

segunda-feira, agosto 03, 2015

FIO


É duro escrever.
O silêncio do quarto
alimenta a dúvida
e o poema é ainda
um novelo
de vidro: pode partir-se
e perder-se
entre coisas avulsas
do dia. Para quê,
para quem, de que vale
e ao que vem
esse fio de voz
ressentida? Não sei,
por enquanto
ainda corre -
mas é duro escrever
contra a parte de mim
que me manda calar
e esquecer.

Rui Pires Cabral

água


sábado, julho 25, 2015

quinta feira



VEM À QUINTA-FEIRA

É quase fim-de-semana e podemos, talvez, beber uma cerveja
ao cair da tarde, enquanto planeamos a viagem a Paris. E se Paris
for muito caro - sei que isto não está fácil - podemos ir a Guimarães
assistir a um concerto, que ouvir é a maneira mais pura de calar.
Vem à Quinta-feira.
A seguir, temos ainda a Sexta e talvez me esperes à porta do emprego,
e talvez fiques para Sábado e Domingo, e talvez o mundo pare
de acabar tão depressa.
Vem à Quinta-feira.
Mas não venhas nesta, vem na próxima.
Nesta, tenho um compromisso que não posso adiar, é um compromisso
profissional - sabes que isto não está fácil - e talvez nos dê hipótese de irmos
a Paris ou a Guimarães. Vem na próxima, que eu preciso de tempo
para arranjar o cabelo, para arranjar o coração,
para elaborar a lista do que me falta fazer contigo.
Vem à Quinta-feira e não te demores.
Enquanto te escrevo, já fui elaborando a lista
(sabes como gosto de pensar em tudo
ao mesmo tempo)
e afinal o que me falta fazer contigo
não é caro:
- viajar de auto-caravana,
- dançar pela Estrada Nacional,
- ver-te chorar.
Choras tão pouco. Ainda bem que estás contente.
Vem à Quinta-feira.
Se não pudermos ir a Paris ou a Guimarães, não te preocupes.
Vem na mesma, que eu vou apanhando as canas-da-índia, as fiteiras,
eu vou recolhendo a palha e reunindo cordas e lona.
Já estive a aprender no Youtube como se faz uma cabana.
Vem na mesma, que eu vou procurando um lugar seguro.
Vem na mesma porque a cabana, como a casa, só funciona com amor
- ou, pelo menos, é o que diz o Youtube.
Temos ainda tanto para fazer.
Por isso, se algum dia voltares, meu amor, volta numa Quinta.

Filipa Leal

terça-feira, julho 21, 2015

terça-feira, julho 14, 2015

ligações


Ilustrações  de George Barbier



"(...) Entretanto, o Cavaleiro chega à minha porta, com o mesmo ardor de sempre. O porteiro não o deixa entrar e diz-lhe que estou doente: primeiro incidente. Ao mesmo tempo, entrega-lhe uma missiva minha - não escrita pela minha mão, segundo o meu hábito. Abre-a e lê o seguinte - escrito pela mão de Victoire: "Às nove em ponto, no bulevar, diante dos cafés." Dirige-se para lá; quando chega, um pequeno lacaio, que não conhece ou supõe não conhecer, pois continua a ser Victoire, anuncia-lhe que deve reenviar a carruagem e segui-lo. Todo aquele caminho romanesco vai-lhe aquecendo a cabeça, e a cabeça quente nunca foi prejudicial, nestes casos. Por fim, ei-lo chegado, e a surpresa, assim como o amor, provocam nele um verdadeiro encantamento. (...)

Como dispúnhamos de seis horas para passarmos juntos e porque eu também decidira que todo esse tempo fosse para ele delicioso, moderei os seus transportes e a amável coqueteria substituiu a ternura. Penso nunca ter feito tantos esforços para agradar nem nunca ter ficado tão satisfeita comigo mesma. Depois do jantar, ora acriançada e razoável, ora folgazona e sensível, por vezes mesmo libertina, diverti-me a tratá-lo como um sultão no seu harém, onde eu ia desempenhando, sucessivamente, os papeis das várias favoritas. Efectivamente, as suas repetidas homenagens, embora sempre recebidas pela mesma mulher, foram-no sempre por uma amante diferente.

 Por fim, ao nascer do dia, chegou o momento da separação; e, apesar do que dizia e fazia para me provar o contrário, ele tinha tanta necessidade disso como pouca vontade de me deixar. (...) "


 As Ligações, Perigosas, Carta 10, Da Marquesa de Merteuil para o Visconde de Valmont, Pierre Chordelos de Laclos.

terça-feira, junho 16, 2015

necessária

Divagação sobre a palavra dormir


Gostava de te olhar a dormir
mesmo que isso nunca aconteça.
Gostava de te olhar,
a dormir. Gostava de dormir
contigo, entrar
no teu sono, sentir seu fluxo suave e nebuloso
a deslizar sobre a minha cabeça
e caminhar contigo nessa floresta luminosa
ondulante de folhas fluorescentes
com um sol aquoso e três luas
até à caverna onde terás que descer,
em direcção ao teu pior medo
Gostava de te oferecer o ramal de prata,
a pequenina flor branca, aquela
palavra que te protegerá
da dor a meio
do teu sonho, do desgosto
central. Gostava de te acompanhar
até ao cimo da longa escadaria
mais uma vez e de ser
o barco para te transportar de volta
com cuidado, uma chama
entre duas mãos em concha
onde o teu corpo se deita
ao lado do meu, e tal como nele entras
com a facilidade com que se respira
Gostava de ser o ar
que te habita durante um breve
momento. Gostava de ser tão imperceptível
e tão necessária.


Margaret Atwood, tradução de Ana Teixeira 


domingo, junho 07, 2015

suave


Paul Gauguin - Here We Make Love, 1893



quinta-feira, maio 14, 2015

decido eu.

Não digas ao que vens. Deixa-me
adivinhar pelo pó nos teus cabelos
que vento te mandou. É longe a
tua casa? Dou-te a minha: leio nos
teus olhos o cansaço do dia que te
venceu; e, no teu rosto, as sombras
contam-me o rosto da viagem. Anda,
vem repousar os martírios da estrada
nas curvas do meu corpo — é um
destino sem dor e sem memória. Tens
sede? Sobra da tarde apenas uma
fatia de laranja — morde-a na minha
boca sem pedires. Não, não me digas
quem és nem ao que vens. Decido eu.

Maria do Rosário Pedreira

terça-feira, abril 07, 2015

quarta-feira, abril 01, 2015

hole


Alexander Calder

domingo, março 29, 2015

ansiedade

...é mais ou menos isto:


http://snapdraws.tumblr.com/post/50082858616/apologies-for-the-terrible-image-quality-im




(com o tempo e muito trabalho interior vamos aprendendo a controlar alguns pensamentos intrusivos, e consegue-se desdramatizar o dia a dia, principalmente quando se consegue recorrer ao humor. mas há ciclos, momentos em que somos lembrados que ela está aí, como um braço mais curto, ou um outro qualquer handicap. 

sim, é por isso que pareço sempre um pouco tensa, que parece que dou importância a coisas insignificantes.
mas, sabes, uma pessoa como eu é mesmo assim. :) a única coisa a fazer é aceitar. e estar vigilante. sempre. cansa muito. 

é mais fácil perceber um problema físico, o tal braço mais curto que não chega onde queremos, mas é visível para todos e por isso não precisamos explicar nada. com a ansiedade ou a depressão é diferente. ninguém vê. e dar-lhe visibilidade implica falar no que se sente, o que pode ser pesado, aborrecido para os outros.
é por isso que calamos. e ficamos mais tristes.

aceitar é a chave. 
mas sinto às vezes que não basta eu aceitar. 
perceber que os outros (me) aceitam também faz falta.)


sexta-feira, março 27, 2015

três


Kees van Dongen

quinta-feira, março 26, 2015

paixão

li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
musica,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguirem-se da terra,
os grandes poemas desaparecerem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
¿e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afaste de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluído, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que eu ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela,
a paixão grega.

Herberto Helder
in A faca não Corta o Fogo

sábado, março 21, 2015

Nomear-te



Não o poema da tua ausência,
somente o esboço, uma fissura num muro,
algo no vento, um sabor amargo.




Alejandra Pizarnik

quarta-feira, março 18, 2015

pechisbeque


(...)"Já por várias vezes falámos sobre a imagem que os outros têm de mim e a imagem que eu própria traço da minha pessoa. Qual é a imagem autêntica? A verdadeira? Não sei, só sei que, quase sempre, me sinto um embuste, uma peça de fancaria, um anelzinho de pechisbeque, daqueles que, pelo uso, rapidamente perdem o dourado e ganham a cor verdoenga do bolor. "

http://ana-de-amsterdam.blogspot.pt/2015/03/bolor.html






(...tantas vezes me sinto assim, uma pequena fraude...)

terça-feira, março 10, 2015

âmbar


Preservation
 Blake Little
A NOSSA VEZ
É o frio que nos tolhe ao domingo
no inverno, quando mais rareia
a esperança. São certas fixações
da consciência, coisas que andam
pela casa à procura de um lugar
e entram clandestinas no poema.
São os envelopes da companhia
da água, a faca suja de manteiga
na toalha, esse trilho que deixamos
atrás de nós e se decifra sem esforço
nem proveito. É a espera
e a demora. São as ruas sossegadas
à hora do telejornal e os talheres
da vizinhança a retinir. É a deriva
nocturna da memória: é o medo
de termos perdido sem querer
a nossa vez.


Rui Pires Cabral

quinta-feira, março 05, 2015

litania



Estava sentado numa sala anexa ao bloco operatório
e uma enfermeira passou com o teu útero num saco de plástico
transparente
Com o teu útero com a minha primeira casa e a de meus irmãos
ainda escorrendo sangue
Uma pequena construção toda em pedra
com divisões de tijolo e cal hidráulica
e janelas abrindo para o vale
Com o teu útero
Com a memória do pão depois de levedado e da tua saia comprida
cheia de farinha
Com a memória de uma gema de ovo
Com o teu útero
Com a memória de uns sapatos demasiado apertados
Com a memória do giz e do ferro a carvão e dos alinhavos
na minha alma antes de ser posta à prova
Com o teu útero
Com a memória de uma véspera de Natal das rabanadas e da aletria
e das águas que de súbito inundaram o soalho da cozinha
Com a memória agitada dessas águas
Com o teu útero
Com a memória de uma explosão de mimosas
Com a memória do cheiro a flor de laranjeira e a néroli
Com o teu útero
Que o anatomo-patologista dentro em pouco se encarregaria de
retalhar
com a lâmina do bisturi

Jorge Sousa Braga

segunda-feira, março 02, 2015

segunda-feira, fevereiro 23, 2015

sem sentido



vaguear no deserto, a cor azul, três estrelas de orion, poemas partidos, fissuras fistulas fracturas,
mármore ao léu
o susto do frio, alcatrão molhado, lencóis desterrados
sangue esperma cuspe, música madrugada
escadas para o nada
não se pode passar, vazio interrompido, o longe é aqui
partir para partir
dois bocados, mil pedaços, morrer sem morrer
acordar, acordai
sede de mar, ponte, monte
fluido, cor de rosa, inchaço
beijo na bochecha, frágil filigrana, fica, fica
se amor não me engana
vaguear, vaguear, deserto, palavra, acção
suor, caminho, susto, intensa, intensa
a mão
orion, deserto, estrelas, poemas rasgados
o céu, fístula aberta, companhia, cicatriz
azul na terra
intensa, aberta
solidão.

quinta-feira, fevereiro 19, 2015

domingo, fevereiro 15, 2015

assertividade

esta semana estive a "ensinar" uma pessoa a não ter medo de parecer mal-educada por querer simplesmente defender os seus interesses e vontades.

disse-lhe que, por vezes, é mesmo necessário ser um pouco "mal-educada" para garantir firmeza perante uma outra parte que se está nas tintas para o que estamos a dizer, que só pensa em si mesma.

que principalmente as mulheres, mas não só, são educadas para agradar e ceder, para não ficar mal perante os outros, e que quando quebramos esse padrão é normal que nos sintamos mal ou diferentes ou "mal-educadas".

no entanto, há mesmo muita gente que acha que está a ser assertiva e está só a ser mal-educada, ou rude. há quem ache que está só a dizer o que pensa e está a ser grosseira. há quem ache que está a fazer um comentário crítico e está simplesmente a saltar conclusões.

recentemente fizeram-me um comentário que poderia ser confundido com assertividade mas foi simples má-educação baseada em inferências incorrectas.

a meu favor, consegui resistir à tentação de justificar e corrigir a falácia.

mas ainda tenho de fazer muitas "respirações" para evitar dar informação a mais a quem não merece sequer saber o meu nome do meio.


enfim.


terça-feira, fevereiro 10, 2015

sexta-feira, janeiro 30, 2015

alice






chegou a pequena alice
que a vida sempre te maravilhe!

segunda-feira, janeiro 26, 2015

sugestão*


Rene Burri, New Mexico





* ou: my body is a landscape

quinta-feira, janeiro 15, 2015

provavelmente



Provavelmente noutro tempo, noutras circunstâncias
chegaríamos a iguais resultados
pelo que de nada adianta imaginar um almagesto
ou tabelas de paralaxe para isto
a que convencionalmente chamamos amor,
nem calcular o ângulo
entre nós e o centro da terra,
de nada nos aproveitara, tu e eu
centros escorraçados de irregular gravitação.

Porém, isso não me impediu de ver plêiades
cada vez que surgias (só
não te dizia nada) plêiades iluminando
meu Hades
com suas cabrinhas coruscantes
pascendo
o vale da sombra da morte.

E a questão hoje é:
 who’s gonna drive you home tonight?
quando o melancólico transístor
destila também outras perguntas, mas nenhuma
tão dura quanto essa,
por exemplo: porque é que a água tem mais tendência
a subir em tubos estreitos
ao contrário do mercúrio?
Isto é view-master e são coisas que faço
na tua ausência.


Daniel Jonas, Os fantasmas inquilinos, Lisboa: Livros Cotovia, 2005

https://asfolhasardem.wordpress.com





segunda-feira, janeiro 12, 2015

palimpsesto



quando eu nasci a minha avó (paterna) tinha 42 anos, a idade que eu tenho agora.

era uma avó jovem, com os três filhos já adultos, dois deles já casados na ocasião.

depois de eu nascer ela foi e fez tantas coisas, que quando a vejo agora, frágil, enrugada, reconheço o palimpsesto que foi sempre a sua vida, com mudanças e desafios a todo o momento.

lembro-me quando tirou a carta de condução, e como enfrentava o preconceito; lembro-me de a ver sempre activa, sempre a pensar, a antecipar e a resolver problemas.

lembro-me de ir apanhar figos e nozes e maçãs e ameixas e cerejas e azeitonas com ela; de ir apanhar musgo para o presépio, bugalhos e azevinho.

lembro-me das viagens de comboio, de passar na ponte D. Maria Pia, no Porto, e de olharmos lá para baixo e sentirmos tudo a tremer.

lembro-me das noites de sueca, whisky e tabaco; da garrafa de aguardente; da fruteira com maçãs, do galheteiro e dos dentes de alho, dos peixinhos de escabeche, do coelho guisado, da marmelada e do leite creme.

e lembro-me de a ouvir falar de antes, do tempo em que eu ainda não a conhecia, das suas ambições, vontades, sonhos. do que fez, do que não conseguiu fazer, do que nunca sonhou conseguir e fez.

e ao lembrar-me percebo a quantidade de vidas que cabe na vida de uma pessoa, que nada nunca é estático, que nos compete aprender e crescer com as mudanças, mesmo que nem sempre sejam as desejadas.


tenho hoje a idade que a minha avó tinha quando eu nasci.

tantas vidas, desafios, mudanças ainda me esperam.