sábado, fevereiro 11, 2012

cair

(...)
"Está quase na hora do empurrão. Por mais costumeiras que sejam as quedas não me habituo a elas. Não me dão jeito. O chão é duro e sujo e já te falei dos comentários e das más línguas. Mais a praga do polícia. Houve alturas em que tive a arrogância de me empoleirar no gradeamento da varanda sem temer nada: querias-me tanto que te repassava uma vertigem funda e puxavas-me para dentro. Querias-me tanto e depois começaram os discursos sobre as certezas afinal incertas, sobre a necessidade que, de repente, descobriste de repensar os nossos caminhos, as nossas verdadeiras vontades. A minha verdadeira vontade és tu e dizes a frase das separações desengraçadas, que "se calhar é melhor darmos um tempo". Damos: damos um tempo e dás-me um empurrão. E lá vou eu a galgar andares, um a seguir ao outro; a ver os vizinhos, por entre a neblina do óleo das batatas a fritar, contemplando a minha passagem fugaz pelas janelas das suas cozinhas - "senhor Augusto, caindo outra vez?", "é verdade, é verdade, não se incomodem, não se incomodem" -, enquanto aproveito o percurso para me ir acomodando à posição menos desconfortável de abordar o chão, estudando a distribuição do peso pelos ossos. Por fim, eis-me estatelado no sítio do costume: mais centímetro para lá, menos centímetro para cá. E o palerma do polícia a aproximar-se, enlevado, armado em Salvador Dali."




António Gregório
Excerto do conto "Cair", in "Uma história de desamor treze vezes"
Ed. Âmbar

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