domingo, fevereiro 26, 2012

boicote

Leni Riefenstahl 
Olympia

Às vezes atiro-me. De cabeça. Sem me preocupar se vou cair, sem saber onde vou parar.
Olho em frente, a janela a chamar, o ar a tornar-se pele, as asas a pedir voo.
Posso partir-me toda, mas atiro-me. Para voar. E cumprir-me no voo.

(publicado inicialmente aqui)





Quem me conhece bem sabe que frequentemente me boicoto. Quero ir numa direcção e faço o movimento contrário. Por medo, por pudor, por insegurança, porque na vida fui habituada a perder. E para evitar novas frustrações, raramente arrisco,  nem sequer faço o esforço de tentar alcançar o  que quero. Penso "não vale a pena" e fico a ver a vida passar-me ao lado. Mas desde que tenho consciência que isto me acontece e desde que, com a ajuda preciosa do teatro  - sempre o teatro - me obrigo a arriscar, percebi que posso contrariar o padrão de perdas e frustrações. E há momentos luminosos, situações únicas, em que uma força interior toma  conta de mim e eu própria me empurro para dentro do jogo, para dentro da dança, para dentro da vida. Porque é a única maneira de a viver plenamente, de me sentir inteira, em acção, em construção. 
E, progressivamente, vou sendo cada vez mais o voo e não a queda.


sábado, fevereiro 25, 2012

quinta-feira, fevereiro 23, 2012

memória poética

"Parece que existe no cérebro uma zona perfeitamente específica que poderia chamar-se memória poética e que regista aquilo que nos encantou, aquilo que nos comoveu, aquilo que dá à nossa vida a sua beleza própria. Desde que Tomás conhecera Tereza, nenhuma mulher tinha o direito de deixar qualquer marca, por mais efémera que fosse, nessa zona do seu cérebro.
Tereza ocupava despoticamente a sua memória poética e varrera de lá as marcas de todas as outras mulheres.
(...)
A história de amor só começara depois: Tereza ficara com febre e ele não a pudera levar a casa como fazia com as outras mulheres. Ajoelhara-se à sua cabeceira e viera-lhe à cabeça a ideia de que ela lhe fora enviada numa cesta ao sabor das águas. Fiz já notar como as metáforas são perigosas. O amor começa com uma metáfora. Ou, por outras palavras, o amor começa no preciso instante em que, com uma das suas palavras, uma mulher se inscreve na nossa memória poética."



Milan Kundera
A Insustentável Leveza do Ser
D. Quixote

segunda-feira, fevereiro 20, 2012

sábado, fevereiro 18, 2012

ir



Jane Hilton, 
Mustang interior, Nevada Desert, 2008

sexta-feira, fevereiro 17, 2012

palavra

Palavra
semente na mente
fermento no corpo
substância
verbo

Palavra
vento
ausência plantada
na carne, no sangue
na seiva
raiz

Palavra
ritual
que renova
facto e razão


palavra espera
coração


(Outubro, 2011)

quarta-feira, fevereiro 15, 2012

rádio






(para mim o dia de s. valentim estará sempre associado à rádio e ao charles aznavour. eu explico: eu os meus irmãos e a minha mãe vínhamos da escola, à boleia no carro da minha tia, a ouvir a rádio local onde faziam um concurso de quadras para o dia dos namorados. a minha mãe, farta de ouvir quadras onde só falavam dos solteiros, fez uma quadra sobre o namoro dos casados. quando chegámos a casa - ainda não havia telemóveis - a minha mãe foi a correr para o telefone e nós ficámos no carro a ouvir. ganhou o 3º prémio e no dia seguinte fomos à rádio buscá-lo: um disco single do charles aznavour. lembro-me que quando vi a cara do senhor no disco não achei muita piada... devia estar à espera dum cantor da moda. não faço ideia qual seria a canção, mas o disco ainda deve andar lá por casa.)

domingo, fevereiro 12, 2012

remember

Marc Thirouin
Remember

sábado, fevereiro 11, 2012

cair

(...)
"Está quase na hora do empurrão. Por mais costumeiras que sejam as quedas não me habituo a elas. Não me dão jeito. O chão é duro e sujo e já te falei dos comentários e das más línguas. Mais a praga do polícia. Houve alturas em que tive a arrogância de me empoleirar no gradeamento da varanda sem temer nada: querias-me tanto que te repassava uma vertigem funda e puxavas-me para dentro. Querias-me tanto e depois começaram os discursos sobre as certezas afinal incertas, sobre a necessidade que, de repente, descobriste de repensar os nossos caminhos, as nossas verdadeiras vontades. A minha verdadeira vontade és tu e dizes a frase das separações desengraçadas, que "se calhar é melhor darmos um tempo". Damos: damos um tempo e dás-me um empurrão. E lá vou eu a galgar andares, um a seguir ao outro; a ver os vizinhos, por entre a neblina do óleo das batatas a fritar, contemplando a minha passagem fugaz pelas janelas das suas cozinhas - "senhor Augusto, caindo outra vez?", "é verdade, é verdade, não se incomodem, não se incomodem" -, enquanto aproveito o percurso para me ir acomodando à posição menos desconfortável de abordar o chão, estudando a distribuição do peso pelos ossos. Por fim, eis-me estatelado no sítio do costume: mais centímetro para lá, menos centímetro para cá. E o palerma do polícia a aproximar-se, enlevado, armado em Salvador Dali."




António Gregório
Excerto do conto "Cair", in "Uma história de desamor treze vezes"
Ed. Âmbar

quinta-feira, fevereiro 09, 2012

madalena

Madalena
Caravaggio





(acho sempre que ela segura um bebé. depois vejo que embala o vazio.)

amor e beleza

"O amor é portanto um amor à beleza. Não saberia, por isso, circunscrever-se ao amor plástico dos corpos, em si mesmo perecível. 
(...)
Infelizmente para nós, garante Lacan, "o amor está já desde há algum tempo separado da beleza". Na era contemporânea, a magia negra inerente ao amor ter-se-á transformado numa banalidade sórdida, num lamentável fiasco entre corpos. Os romances de Michel Houellebecq expõem cruamente a degradação hoje exercida pelo erótico, sublinha também o escritor François Meyronnis em De l'extermination considérée comme l'un des beaux arts. Se Platão ligou o desejo à falta, a grande desgraça actual é ter substituido a falta metafísica pela necessidade vulgar, uma inesgotável máquina de frustrações. "Retira-se ao sujeito o seu desejo", diz ainda Lacan, " e, em troca, ele é enviado para o mercado, onde é submetido a uma hasta pública". Numa era de intercâmbio de corpos e de perpétua insaciabilidade, o Eros-impulso travestiu-se de Eros-tirano. "Uma alma assim tiranizada", prognosticava Fedro, "está sempre exposta à carência e ao vazio". Uma projecção de fantasias mediáticas sobre corpos cada vez menos habitados. Um poço sem fundo de tristeza pelos "íncubos" e "súcubos" em que homens e mulheres se tornaram uns para os outros.
Ousemos uma vez mais afirmar com Sócrates, suger o filósofo contemporâneo Alain Badiou, a "Ideia verdadeira, o Princípio, contra o fantasma desta liberdade com que nos oprimem, a liberdade de depender de objectos insignificantes e de desejos minúsculos". Será necessário, a fim de libertar Eros, reencontrar por detrás do desencanto contemporâneo o entusiasmo do coração puro? A força primitiva da torrente que nos move misteriosamente, terá dito Ortega Y Gasset, e que já deplorava o século anterior por ter deixado de falar do amor verdadeiro."



Aude Lancelin e Marie Lemonnier
"Os filósofos e o amor - amar de Sócrates a Simone de Beauvoir"
Tinta da China

quarta-feira, fevereiro 08, 2012

caligrafia

ao vasculhar alguns papeis velhos, reencontro-me com a mudança da minha caligrafia desde os 18 anos, revejo a pessoa que fui e a que ainda sou, e algumas surpresas.

como esta frase, escrita entre outros desejos para cumprir:

"perder a vontade de morrer."

não vou falar sobre isso.
surpreendeu-me vê-la escrita, não me lembro sequer porque a escrevi naquela data, não muito antiga.
mas como a escrevi, sinto necessidade de dizer agora:
já perdi essa vontade.
(se é que alguma vez a tive verdadeiramente...)

escrever é um vício.
uma necessidade.

por vezes é a expressão possível do grito.
ou do vómito.

depois passa o tempo e somos outros.

domingo, fevereiro 05, 2012