domingo, março 29, 2015

ansiedade

...é mais ou menos isto:


http://snapdraws.tumblr.com/post/50082858616/apologies-for-the-terrible-image-quality-im




(com o tempo e muito trabalho interior vamos aprendendo a controlar alguns pensamentos intrusivos, e consegue-se desdramatizar o dia a dia, principalmente quando se consegue recorrer ao humor. mas há ciclos, momentos em que somos lembrados que ela está aí, como um braço mais curto, ou um outro qualquer handicap. 

sim, é por isso que pareço sempre um pouco tensa, que parece que dou importância a coisas insignificantes.
mas, sabes, uma pessoa como eu é mesmo assim. :) a única coisa a fazer é aceitar. e estar vigilante. sempre. cansa muito. 

é mais fácil perceber um problema físico, o tal braço mais curto que não chega onde queremos, mas é visível para todos e por isso não precisamos explicar nada. com a ansiedade ou a depressão é diferente. ninguém vê. e dar-lhe visibilidade implica falar no que se sente, o que pode ser pesado, aborrecido para os outros.
é por isso que calamos. e ficamos mais tristes.

aceitar é a chave. 
mas sinto às vezes que não basta eu aceitar. 
perceber que os outros (me) aceitam também faz falta.)


sexta-feira, março 27, 2015

três


Kees van Dongen

quinta-feira, março 26, 2015

paixão

li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
musica,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguirem-se da terra,
os grandes poemas desaparecerem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
¿e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afaste de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluído, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que eu ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela,
a paixão grega.

Herberto Helder
in A faca não Corta o Fogo

sábado, março 21, 2015

Nomear-te



Não o poema da tua ausência,
somente o esboço, uma fissura num muro,
algo no vento, um sabor amargo.




Alejandra Pizarnik

quarta-feira, março 18, 2015

pechisbeque


(...)"Já por várias vezes falámos sobre a imagem que os outros têm de mim e a imagem que eu própria traço da minha pessoa. Qual é a imagem autêntica? A verdadeira? Não sei, só sei que, quase sempre, me sinto um embuste, uma peça de fancaria, um anelzinho de pechisbeque, daqueles que, pelo uso, rapidamente perdem o dourado e ganham a cor verdoenga do bolor. "

http://ana-de-amsterdam.blogspot.pt/2015/03/bolor.html






(...tantas vezes me sinto assim, uma pequena fraude...)

terça-feira, março 10, 2015

âmbar


Preservation
 Blake Little
A NOSSA VEZ
É o frio que nos tolhe ao domingo
no inverno, quando mais rareia
a esperança. São certas fixações
da consciência, coisas que andam
pela casa à procura de um lugar
e entram clandestinas no poema.
São os envelopes da companhia
da água, a faca suja de manteiga
na toalha, esse trilho que deixamos
atrás de nós e se decifra sem esforço
nem proveito. É a espera
e a demora. São as ruas sossegadas
à hora do telejornal e os talheres
da vizinhança a retinir. É a deriva
nocturna da memória: é o medo
de termos perdido sem querer
a nossa vez.


Rui Pires Cabral

quinta-feira, março 05, 2015

litania



Estava sentado numa sala anexa ao bloco operatório
e uma enfermeira passou com o teu útero num saco de plástico
transparente
Com o teu útero com a minha primeira casa e a de meus irmãos
ainda escorrendo sangue
Uma pequena construção toda em pedra
com divisões de tijolo e cal hidráulica
e janelas abrindo para o vale
Com o teu útero
Com a memória do pão depois de levedado e da tua saia comprida
cheia de farinha
Com a memória de uma gema de ovo
Com o teu útero
Com a memória de uns sapatos demasiado apertados
Com a memória do giz e do ferro a carvão e dos alinhavos
na minha alma antes de ser posta à prova
Com o teu útero
Com a memória de uma véspera de Natal das rabanadas e da aletria
e das águas que de súbito inundaram o soalho da cozinha
Com a memória agitada dessas águas
Com o teu útero
Com a memória de uma explosão de mimosas
Com a memória do cheiro a flor de laranjeira e a néroli
Com o teu útero
Que o anatomo-patologista dentro em pouco se encarregaria de
retalhar
com a lâmina do bisturi

Jorge Sousa Braga

segunda-feira, março 02, 2015