deitei fora "todos os sonhos do mundo"
todos?
não.
há sempre uma pequena aldeia gaulesa dentro de nós que resiste.
depois da capitulação, que sonhos ainda resistem?
de mãos vazias, espero.
não bebi a poção mágica nem caí no caldeirão.
o que há a fazer?
"agora sou pequenina e estou com a minha mãe no "castelo negro", bebo um trinaranjus de laranja e como um rissol enquanto esperamos o almoço. bebo rápido de mais o sumo, a boca doce a pedir mais.
ela desenha "damas antigas" no bloco e eu copio. sou pequenina e sei desenhar bem e quero ser bonita como a minha mãe.
o "castelo negro" parece saído de um quadro do Hopper, com o balcão comprido e as mesas coladas à parede como nos filmes americanos. o empregado é moreno e simpático, sou pequenina e acho-o bonito."
"agora tenho 15 anos e estou à espera da minha mãe, ou tenho 40 e penso que sou a minha mãe quando eu tinha 15 anos. estacionei o carro e acho incrível saber conduzir. sempre quis aprender a guiar mas herdei inseguranças, o gene da ansiedade social e alguma distracção - "olha para o chão" dizia a minha mãe e eu na lua a ir de encontro às coisas.
páro nos semáforos, a rua a subir e acho incrível saber conduzir e volto a ser a minha mãe noutra rua a subir, tenho 15 anos e ela demora a estacionar entre dois carros, às vezes desiste, procura um lugar mais longe. como eu às vezes faço. não pela dificuldade em si, mas porque não suporto ser olhada e é nesse momento que falho. como ela.
penso nas mulheres da minha família a conduzir, a minha tia no rally, a minha avó a conduzir uma carrinha enorme, a minha mãe a mudar pneus. penso nos homens daquela tasca de beira da estrada que só de verem passar um carro conduzido por mulheres atiravam bocas e insultos grosseiros. porque tanto ódio, meu deus? canso-me de tanta ignorância."
"estou no largo da estação e acabei de perder o autocarro para casa. meti umas moedas e telefonei, a minha mãe vem-me buscar. está a chover e eu, para castigar quem? resolvo ficar à chuva debaixo das tílias e plátanos em vez de ir para dentro da estação. tenho um impermeável fino com carapuço e sinto as gotas da chuva escorrerem cara abaixo. tenho 12 anos e estou triste. dentro do impermeável o corpo aquece, deixo de sentir a chuva, entro num sítio qualquer dentro de mim onde tudo se apaga e deixo de pensar.
não sei disso na ocasião mas entrei num estado meditativo, hipnótico que me vai servir muitas vezes."
"agora não sei que idade tenho, a minha mãe ainda não tem 40 e está feliz. estamos no início do verão, o calor ainda se suporta, está um dia azul, a minha mãe abre a janela do carro, põe as mãos de fora, e grita, como se dissesse "estou viva" para toda a gente saber, e nós a achar estranho, meios envergonhados.
tolos. a felicidade é para ser gritada e tenho pena de não ter aberto também a janela e gritado com a minha mãe naquele momento. é tão raro deixarmos que o corpo e a mente sejam livres, totalmente livres para gritar a felicidade "estamos vivos" pela janela do carro, mesmo se temos quase 40 anos e três filhos no banco de trás. não sei que idade tenho mas quero ser feliz e divertida como a minha mãe."
"com quem me quero parecer agora? ainda há desenhos de "damas antigas" que eu possa imitar?
não imitei os caminhos da minha mãe, não me espera nada igual, não tenho filhos no banco de trás nem uma casa nem marido. fugimos de um estereótipo para cair noutro. se deixássemos de pensar "em ir ao encontro" ou "em fugir" do que é esperado talvez pudéssemos realmente encontrar-nos."
"tenho 22 anos e mergulho numa praia quase vazia, o mar esmeralda, o céu muito azul, está calor mas sopra uma brisa. ponho-me a boiar. podia ficar ali para sempre. sinto-me igual à água, ao vento, ao sol e sou toda terra e fogo. como naquela janela de autocarro, o sol a bater-me na face, o corpo quente a pedir vida, eu meia adormecida a derreter na paisagem beirã quando viajo de fim de semana.
sou mais velha e estou deitada no chão perto da janela da minha primeira casa, a sala vazia, o sol a entrar dentro de mim.
estou livre, bonita e sensual pela primeira vez, mas ninguém vê.
vou demorar anos a apresentar-me ao mundo: este é o meu corpo. venero-o. venerem-no. sou uma mulher."
"agora estou num café a fazer tempo enquanto não entro no cinema e escrevo quase sem pensar, sem ver. estou nua frente a um espelho, que são os outros, mas ainda não sei que imagem me devolverá. tenho 40 anos mas podia ter 20. a vida repete-se? a minha é um palimpsesto, camadas que se misturam e das quais reconheço apenas pedaços soltos.
mas reconheço a força de contrariar as evidências, sair do ciclo, procurar a aldeia gaulesa que resiste, mesmo sem poção mágica, num qualquer país dentro de mim."
estou aqui.
de mãos vazias.
(não sou nada)
deitada na vida, a boiar nos elementos da natureza.
(não posso querer ser nada)
à espera
de "todos os sonhos do mundo"
namaskar.