domingo, julho 31, 2011

outra dimensão

frigorífico

Gosto de entrar em lojas de electrodomésticos e de móveis. Não compro nada, fico só a ver e à procura de estórias. Há sempre homens a olhar para os enormes ecrãs lcd que gostariam de comprar mas não lhes cabem na sala nem no orçamento; há sempre mulheres a passear nas salas e quartos decorados a imaginarem uma vida familiar assim, arrumada e artificial.
Na verdade, sempre que vou a essas lojas, ando à procura deles. Do casal jovem a discutir o tamanho do frigorífico. Há uma estória com eles mas ainda não encontrei o fio condutor. Conheço apenas fragmentos e sei que o frigorífico tem um papel importante no desenlace.
Já os vi antes. Na ourivesaria, a escolher o anel de noivado, ela a cobiçar um anel com um diamante verdadeiro e ele preocupado a dizer "não gostas mais daquele?", apontando para outro com uma pequena pérola. Compraram o do diamante. Ele a suar enquanto entregava o cartão de crédito.
Anos mais tarde, ela a fumar, à porta da loja de roupa barata onde trabalha. Mais gorda, muito pintada, o cabelo com madeixas, uma t-shirt estampada com dourados, caças justas e sandálias de meter o dedo. Vendeu o anel e a aliança para entrar na sociedade da loja com o novo namorado que conheceu nas danças de salão depois do divórcio.
Ele voltou para casa da mãe. "Eu disse-te que ela não prestava", diz a senhora todos os dias, ao servir a sopa. Ainda está a pagar o crédito do anel, mas não sei qual dos dois terá ficado com o frigorífico.

quarta-feira, julho 13, 2011

instinto


"Como o instinto varia no porco que chafurda
Comparado, oh elefante semipensante, com o teu!
Mistura isso e pensa, que linda barreira,
Eternamente separados em no entanto sempre próximos!
Quão aliadas a recordação e a imagem que a reflecte!
Que finas divisórias separam o sentir do pensar!"

Alexander Pope, Essay on Man

:)

terça-feira, julho 12, 2011

dark room

"Tinha trinta e cinco anos e, logo adiante, uma porta para o desconhecido. De péssimo gosto colocarem um espelho logo aí, balbuciou ao girar, trêmula, a maçaneta, e dar com a escuridão completa de um quarto povoado a princípio apenas por uma sonoridade nova, que parecia convidá-la ao próximo passo. Longos suspiros, gemidos breves e demorados, soluços incontidos, nenhuma palavra clara, humana, nem vozes detectáveis. E vultos movendo-se na cadência de ruídos sabáticos, como demônios em festa. Antes de fechar por completo a porta atrás de si, um último pensamento a atravessou: Faço por meu filho! Depois, mais nenhum. E, uma vez fechada a porta, a primeira mão a conduziu. Em seguida, outras se juntaram àquela: mãos ousadas, encharcadas de muitos gozos, impregnadas de muitas peles, firmes, decididas, porém gentis (os demônios eram civilizados!). E ela foi. Foi tragada pelo escuro. Tocou, lânguida, esse escuro, e deixou-se tocar por ele sem oferecer resistência, até a fluidez absoluta dos sentidos, até não poder distinguir-se dos demais suspiros, gemidos e soluços.

Horas depois (talvez horas, não sabia nem queria saber), exausta, abandonou o quarto (sem se voltar para o espelho da porta), atravessou o corredor vermelho e desceu as escadas até atingir a recepção. Mesmo percorrendo-o esgotada, o caminho de volta pareceu-lhe infinitamente mais curto. Foi até à chapelaria, pediu a bolsa e o casaco (retidos pela moça loura que naquele momento podia ver no bar fumando com dois travestis) à funcionária, pagou o que lhe foi dito que devia, e só ao atingir outra vez a calçada constatou a importância do que acontecera naquele lugar. Quem saía dali já não era Júlia Capovilla, mas a sacerdotisa fertilizada, a Rainha do Sabbat.

E se os anjos e santos das escrituras não passassem de demônios gentis? Haveria, afinal, maior virtude que a da entrega e da posso consumadas em total anonimato? Algo mais santo que se abster dos vínculos com a matéria vista? Fraternidade mais completa?

Júlia respirou o ar daquela noite tão satisfeita. Vagueou por ruas desconhecidas, o corpo pesando-lhe menos. E a madrugada pareceu-lhe manhã de tão clara e insuspeita. Ela, que tantas vezes abominara o contato humano, e em outras tantas repudiara o estranho, de repente sentiu-se capaz de lavar os pés imundos da mendiga e compreender os criminosos, errar livre como os bêbados, dar o corpo em troca como as putas.

Fecundada por matérias inomináveis, carnes incógnitas, fez-se toda generosidade e desapego. A menina-sacerdotisa germinava, brotava agora sem ater-se a nenhum limite ou vínculo."




Manoela Sawitzki, Suíte Dama da Noite
Ed. Cotovia, colecção Sabiá




(no escuro, como as carraças.)

segunda-feira, julho 11, 2011

intencionalidade do desejo

" Faz parte da intencionalidade do desejo que uma pessoa particular seja concebida como o seu objecto. A alguém agitado pelo seu desejo pela Joana, é ridículo dizer "Fica com a Henriqueta, ela servirá igualmente bem." Desde modo, nessa situação, surge a possibilidade de enganos de identidade. O desejo de Jacob por Raquel parece satisfeito pela sua noite com Lia, só na medida em que, e pelo tempo que, Jacob imaginou que era Raquel a pessoa com quem estava deitado. (...)
As nossas emoções sexuais são fundadas em pensamentos individualizados: és tu quem eu quero e não outro. Esta intencionalidade individualizada não é simplesmente originada pelo facto de que são as pessoas (por outras palavras, os indivíduos) quem desejamos. É originada pelo facto de que o outro é desejado como um sujeito corporizado, e não apenas como um corpo."

Roger Scruton, Guia de filosofia para pessoas inteligentes
Guerra e Paz

domingo, julho 10, 2011



"There are more things in heaven and earth, Horatio,
Than are dreamt of in your philosophy."


Shakespeare, Hamlet



http://www.youtube.com/watch?v=KXL1dPmw9VA&feature=related

quinta-feira, julho 07, 2011

pérolas


Louise Brooks

domingo, julho 03, 2011

onda zen





(voz altamente viciante)

sexta-feira, julho 01, 2011

júlia

Meryl Streep, 1969
 A menina Júlia, Strindberg


A menina e João dirigem-se até á porta. João leva a mão a um dos olhos.


Júlia - O que é que tem nesse olho? Deixe-me ver?

João - Oh! Não é nada. É um grão de poeira. Isto já passa.

Júlia - Devo ter sido eu com a minha manga. Sente-se aí para eu ver. (Toma-o pelo braço e obriga-o a sentar-se, inclina-lhe a cabeça para trás e tenta apanhar o grão de poeira com o seu lenço de assoar) Agora esteja quieto, completamente quieto. (Dá-lhe uma palmada na mão) Faça o que eu lhe estou a dizer. Porque é que está a tremer dessa maneira, um homem do seu tamanho? (Tacteia-lhe os bíceps) Com estes músculos!

João - (preventivo) Menina Júlia!

Júlia - O que foi, Monsieur Jean?

João - Attention! Je ne suis qu'un homme.

Júlia - Continue quieto! Cá está. Já saiu. Beije-me a mão e diga obrigado.