quarta-feira, maio 29, 2013

devagar

A arte da lentidão

"Talvez precisemos voltar a essa arte tão humana que é a lentidão. Os nossos estilos de vida parecem irremediavelmente contaminados por uma pressão que não dominamos; não há tempo a perder; queremos alcançar as metas o mais rapidamente que formos capazes; os processos desgastam-nos, as perguntas atrasam-nos, os sentimentos são um puro desperdício: dizem-nos que temos de valorizar resultados, apenas resultados.

À conta disso, os ritmos de atividade tornam-se impiedosamente inaturais. Cada projeto que nos propõem é sempre mais absorvente e tem a ambição de sobrepor-se a tudo. Os horários avançam impondo um recuo da esfera privada. E mesmo estando aí é necessário permanecer contactável e disponível a qualquer momento. Passamos a viver num open space sem paredes nem margens, sem dias diferentes dos outros, sem rituais reconfiguradores, num contínuo obsidiante, controlado ao minuto. Damos por nós ofegantes, fazendo por fazer, atropelados por agendas e jornadas sucessivas em que nos fazem sentir que já amanhecemos atrasados.

Deveríamos, contudo, refletir sobre o que perdemos, sobre o que vai ficando para trás, submerso ou em surdina, sobre o que deixamos de saber quando permitimos que a aceleração nos condicione deste modo. Com razão, num magnífico texto intitulado “A lentidão”, Milan Kundera escreve: «Quando as coisas acontecem depressa demais, ninguém pode ter certeza de nada, de coisa nenhuma, nem de si mesmo.» E explica, em seguida, que o grau de lentidão é diretamente proporcional à intensidade da memória, enquanto o grau de velocidade é diretamente proporcional à do esquecimento. Quer dizer: até a impressão de domínio das várias frentes, até esta empolgante sensação de omnipotência que a pressa nos dá é fictícia. A pressa condena-nos ao esquecimento.

Passamos pelas coisas sem as habitar, falamos com os outros sem os ouvir, juntamos informação que nunca chegamos a aprofundar. Tudo transita num galope ruidoso, veemente e efémero. Na verdade, a velocidade com que vivemos impede-nos de viver. Uma alternativa será resgatar a nossa relação com o tempo. Por tentativas, por pequenos passos. Ora isso não acontece sem um abrandamento interno. Precisamente porque a pressão de decidir é enorme, necessitamos de uma lentidão que nos proteja das precipitações mecânicas, dos gestos cegamente compulsivos, das palavras repetidas e banais. Precisamente porque nos temos de desdobrar e multiplicar, necessitamos de reaprender o aqui e o agora da presença, de reaprender o inteiro, o intacto, o concentrado, o atento e o uno.

Lembro-me de uma história engraçada que ouvi contar à pintora Lourdes de Castro. Quando em certos dias o telefone tocava repetidamente, e os prazos apertavam e tudo, de repente, pedia uma velocidade maior do que aquela que é sensato dar, ela e o Manuel Zimbro, seu marido, começavam a andar teatralmente em câmara lenta pelo espaço da casa. E divergindo dessa forma com a aceleração, riam-se, ganhavam tempo e distanciamento crítico, buscavam outros modos, voltavam a sentir-se próximos, refaziam-se.

Mesmo se a lentidão perdeu o estatuto nas nossas sociedades modernas e ocidentais, ela continua a ser um antídoto contra a rasura normalizadora. A lentidão ensaia uma fuga ao quadriculado; ousa transcender o meramente funcional e utilitário; escolhe mais vezes conviver com a vida silenciosa; anota os pequenos tráficos de sentido, as trocas de sabor e as suas fascinantes minúcias, o manuseamento diversificado e tão íntimo que pode ter luz."

José Tolentino Mendonça
In Expresso, 25.5.2013

segunda-feira, maio 27, 2013

nursing


Gian Giacomo de Alladio, 
also known as Macrino d'Alba 
1460-65- 1528 Virgin Nursing Jesus


segunda-feira, maio 20, 2013

cerejas



Anna Morosini


sexta-feira, maio 17, 2013

broken hallelujah








 (depois de meses de depressão, talvez o sol do fim de semana passado, talvez a boa companhia temperada com a solidão e silêncio que precisava ou, quem sabe, talvez o pensamento que uma amiga me dirigiu num espaço de oração, seja o que for, alguma da alegria e paz voltaram e fizeram-me mais leve. eu sei que é apenas até à próxima recaída - que pode ser já amanhã - mas enquanto for, é.)


(p.s. claro que se continuarmos a ter estas imprevisíveis mudanças de temperatura e se continuar a chover, é possível que também o meu estado de espírito volte a março...)




quinta-feira, maio 16, 2013

salão


Henri de Toulouse Lautrec
Au Salon de la rue des moulins

domingo, maio 12, 2013

reparo


na velha muito enrugada e muito magra, o cabelo pintado e puxado para cima com laca, que leva  uma carta na mão.
para quem? para uma irmã que vive em Lisboa, para um filho em França, para uma amiga que lhe pediu ajuda?
a carta. na mão, à espera de vez nos correios.

no casal idoso sentado lado a lado no café, no movimento das mãos. primeiro ela, as mãos a tocarem a mesa, para cima e para baixo em movimento lento, como se confirmassem que são mãos e que tocam na mesa. depois ele, com os mesmos movimentos enquanto lhe responde a qualquer coisa.

na velha, muito velha, na mesa em frente e no movimento fragmentado com que leva uma colher de iogurte à boca. tem um chapéu estranho, está sozinha mas depois chegam duas mulheres. filha e neta?

no rapaz de muletas no parque, sentado num banco, as mãos no queixo, a olhar o rio, a olhar o nada, a esperar por nada. um rapaz triste e sozinho, num dia de maio, a primavera a explodir. em que pensa? parece que repete um gesto de solidão mas, perturbado pelas muletas, ficou mais exposto a quem passa. quando olhei para ele, respirou profundamente, retirando por segundos as mãos do queixo, e voltou à pose. penso como é raro ver um homem nitidamente triste a expor a sua tristeza num sítio público.

no casal de reformados (professores?) elegantes, sentados um em frente ao outro, ela a fazer sudokus com a avidez de quem faz um trabalho de casa, alguém lhe disse que era bom para o alzheimer. ele a ler o jornal, de óculos, a carteira masculina pousada na mesa, um anel  no dedo, a barba curta bem aparada.

no rapaz jovem que tira a t-shirt e se deita numa das plataformas em frente ao rio, a apanhar sol, como eu, que também me deitei numa plataforma, comi uma laranja e, como ele, fico a observar o rio, com mil reflexos, e os divertidos patinhos, amarelos e cinzentos, sempre atrás da mãe, aos saltos a tentar apanhar pequenos insectos.

no homem que se aproximou da margem do rio para observar os patinhos, a mulher dele ficou atrás, de óculos de sol e braços cruzados. o homem observa a vida e ela espera, e eu penso que aquilo não vai dar certo, se os dois não se comovem com a vida num domingo cheio de sol, não pode dar certo. depois ele senta-se numas pedras mesmo na margem, olha para trás e faz um sinal para a chamar "senta-te aqui", ela vai, fica dois segundos ao lado dele e vão embora.

olho em volta no café. há toda uma filosofia a distinguir os casais que se sentam lado a lado e os que se sentam frente a frente. e lembro-me, uma vez no comboio, um homem furioso a gritar com o revisor porque os dois bilhetes, para ele e para a mulher eram frente a frente e não lado a lado, porque se os bilhetes eram para ele E A MULHER DELE tinham de ser LADO A LADO. uma conversa impossível de tão irracional, toda a gente a olhar, e a mulher, encolhida, envergonhada.

subo as escadas rolantes e vejo os casais de domingo, as caras de quem faz o frete de "ir dar uma volta", a necessidade de se entreterem com o que vêem, com compras, com o material de conversa que um centro comercial dá, "olha ali, não gostas?", para não se terem de olhar verdadeiramente depois da noite anterior, do sexo que houve ou não houve, das máscaras que puseram, do regresso ao quotidiano insosso mas necessário para que, para a semana, haja novamente a "noite anterior".

e penso que é uma pena que as pessoas (todos nós) não se aceitem como são. que os homens e as mulheres não aceitem que a pessoa que têm ao lado é um animal indomável e maluco, com pulsões estranhas e pensamentos aleatoriamente maravilhosos.
e que tantas vezes, seja lá por que motivos, se tente "amansar a fera", como na obra de Shakespeare, sempre usando o controle, a violência, o condicionamento (do outro, de nós próprios, das nossas emoções), para não deixar que essa animalidade nos afecte, nos relembre como somos, para tentar manter um poder que de facto não temos, aniquilando o que de mais profundo somos, anulando as potencialidades de crescermos e aprendermos uns com os outros.

e penso que a minha vida ultimamente tem sido pautada por uma montanha de constrangimentos, pressões, stress, dores físicas, cansaço, má disposição, mas que, nos intervalos, coisas boas acontecem.

hoje está um dia lindo, apanhei sol junto ao rio, deixei que a vida me tocasse, e sei que "eu vou dar certo", porque a vida sempre nos leva para onde e para quem precisamos, porque sei que quero crescer e aprender, e dar-me à vida.







sábado, maio 11, 2013


Bridget Riley,  Debut

quarta-feira, maio 08, 2013

A confirmação do "eu"

(...)

 2. Talvez seja verdade que não existimos enquanto não houver quem veja que nós existimos, que não falamos enquanto não houver quem ouça o que estamos a dizer, no fundo, que não estamos completamente vivos enquanto não formos amados.

 3. O que significa "o homem é um ser social"? Apenas que os seres humanos precisam uns dos outros para se definir e conhecer a si próprios, ao contrário dos moluscos ou das minhocas. Não podemos ter uma noção correcta de nós próprios se não existirem outros para nos mostrarem onde nós acabamos e eles principiam. "Um homem pode alcançar tudo na solidão, excepto um carácter", escreveu Stendhal, sugerindo que o carácter tem a sua génese nas reacções dos outros a nós próprios. Como o "eu" não é uma estrutura integrada, a sua fluidez requer os contornos fornecidos pelos outros. Preciso de um outro para me ajudar a carregar com a minha história, alguém que me conheça tão bem como eu me conheço a mim próprio, ou melhor ainda.

 4. Sem amor, perdemos a capacidade de possuir uma identidade própria; com amor, há uma confirmação permanente do eu. Não admira que o olhar de Deus seja tão importante na religião: sermos vistos significa que a existência é reconhecida, e tanto melhor se o observador for Deus ou alguém que nos ama. A nossa presença é legitimada aos olhos de outro ser que para nós é ( e para quem nós somos) o mundo. Cercados por pessoas que não se lembram bem de nós, pessoas a quem contámos as nossas histórias vezes sem fim, e no entanto, nunca sabem se somos casados, quantos filhos temos, e se o nosso nome é Brad ou Bill, Catrina ou Catherine (e nós também não nos lembramos do delas), não é reconfortante saber que podemos refugiar-nos da nossa esquizofrenia nos braços de alguém que tem a nossa identidade bem presente? (...)"



 Alain de Botton, Ensaios sobre o Amor

sábado, maio 04, 2013

quinta-feira, maio 02, 2013