quarta-feira, março 27, 2013

sexta-feira, março 22, 2013

a ferver


foto: Artur Vaz Oliveira



a menina júlia sentou-se na habitual mesa de café. cruzou suavemente as pernas e esperou. os olhos perdidos a esvoaçar contra os vidros baços. apesar de ser quase verão, pediu chá.

monsieur jean, sempre delicado, serviu-a. com gestos precisos pousou cuidadosamente a chávena, o pratinho de biscoitos e o bule. elevou o bule e libertou o líquido quente em direcção à chávena. quando terminou, olhou-a nos olhos,"bom apetite".

a menina júlia olhou-o enquanto se afastava. as costas elegantes, as nádegas perfeitas, o andar altivo e seguro. sentiu-se quente, a ferver, como o chá que bebia. quis tocar-lhe. imaginou-o nu. "uma senhora não devia pensar nestas coisas", e quase se queimava. mas já há algum tempo que a menina júlia tinha deixado de querer fingir que era "esse tipo de senhora".
voltou a olhar, discreta, para o rabo de monsieur jean, os movimentos corporais de um bailarino. imaginou-o num salão de dança, as mulheres todas à sua volta, e ele a rodopiar com ela, em passos de salsa e merengue, samba, chá-chá-chá. o peito firme, as ancas a moverem-se livres, os olhos sempre nos dela, a mão suave, pousada nas suas costas, a conduzi-la por toda a sala. de repente, num passo de tango, as pernas de ambos entrelaçam-se, ele leva-a próximo do chão e num ápice, sempre firme, puxa-a para cima, os rostos próximos, o peito dela colado ao dele, o coração aflito, a respiração ofegante.

a menina júlia, olhos baços contra os vidros do café, face ruborizada, pernas apertadas, o corpo a arder com a sua imaginação. mas, de repente, pensou se toda a delicadeza de monsieur jean não seria falsa. se na intimidade não se revelaria bruto, rápido, sem interesse em agradar-lhe, como se desprezasse o que já estava conquistado. seria monsieur jean um don juan por revelar? um desses homens a quem só a conquista dá tesão e depois murcham?

tudo isto pensava a menina júlia enquanto terminava o chá. e tudo desapareceu rapidamente do seu pensamento quando o marido, finalmente, entrou no café.
sentou-se ao lado dela, pousou um beijo suave na sua mão, "que pensativa!", disse ele. ela sorriu baixando os olhos. depois, aproximou-se dele e murmurou "pensava em ti", enquanto lhe mordiscava, leve e ternamente, o lóbulo da orelha.




(um dos textos muito livres, que me apareceram a partir do trabalho de laboratório para a personagem "menina júlia", de strindberg, em 2011)

terça-feira, março 19, 2013

sentimentos secretos

"Não parece haver segredos nos dias de hoje. É moda dizer que se fala de tudo, seja em que contexto for. É elogiado aquele que depressa dá conta da sua vida íntima em revistas especializadas em escândalos. Processos em "segredo de justiça" surgem com pormenores nos media, como se houvesse um canal directo entre a investigação e alguns jornais. Na televisão os programas de entretenimento expõem a vida privada dos participantes, estimulados por apresentadores sequiosos de mais efeitos fáceis. Nas redes sociais, com destaque para o Facebook, inúmeros "Gosto" aplaudem novos relacionamentos amorosos ou rupturas mais ou menos sangrentas, no mesmo plano em que se aplaudem eventos públicos de qualidade duvidosa. Nas famílias fala-se cada vez menos. Em muitas casas desapareceu o jantar em conjunto, o pequeno-almoço partilhado ou a reunião familiar de fim-de-semana, mas pais espiam os computadores dos filhos e homens e mulheres ciumentos tentam desvendar supostas infidelidades nos telemóveis dos parceiros. Tudo se passa como se se tivesse perdido o limite que separa a esfera íntima do que pode ser partilhado com terceiros, como se não existissem barreiras ao nosso interior e ao que pretendemos (ou podemos) revelar.

Esta sociedade "aberta" não tem melhorado a partilha íntima no casamento, nem levado a uma relação mais aprofundada entre pais e filhos. No casal, é frequente que as diferenças de género tenham sido apagadas em nome de uma "democracia" relacional, como se homens e mulheres tivessem de ser sempre iguais e fosse necessário fazer tudo a dois. A verdade é que temos de procurar contactar com o íntimo do outro, mas ao mesmo tempo conservar a integridade psíquica e as nossas fantasias. Pais demasiado controladores geram nos filhos comportamentos secretos ou atitudes dissimuladoras: onde deveria estar o confronto leal, surge a mentira e a oposição.

No entanto, ninguém jamais poderá ser dono dos nossos pensamentos secretos. Quem poderá impedir que, por momentos, possamos viver noutro lugar? Quem calará o nosso desejo momentâneo e escondido de vivermos com outro companheiro? Esquecerei algum dia aquela ideia persistente e sobrevalorizada de que o meu cônjuge está a ser infiel?

Por mais que a sociedade tente destruir a intimidade, não o conseguirá. A verdade é que o outro é, na realidade, um terceiro, porque eu sou um, mas também um segundo que recebe a comunicação e a devolve. O que dizemos ao outro é apenas uma parte do que verdadeiramente se sente, porque é muito difícil pôr em palavras o nosso íntimo. E, para salvaguarda de muitas relações, não se pode mesmo dizer tudo em todos os momentos. E a partilha, embora necessária, não é fácil. O nosso companheiro está a apreciar uma música do mesmo modo? Numa relação sexual, a intensidade do que um sente é igual à do parceiro e deve ser comparada? O que quero fazer num determinado momento é para ser logo satisfeito com a pessoa com quem partilho a vida?

Os pensamentos secretos são a garantia da nossa integridade psíquica, por isso os doentes com esquizofrenia sofrem quando, dominados por ideias delirantes, acreditam que o seu pensamento é conhecido de todos. No entanto, nada permanece mais importante, nos dias de hoje, do que a tentativa séria de escutarmos e reconhecermos quem está próximo de nós."




Daniel Sampaio
Revista do Público, 17-3-2013
(sublinhado meu)

sábado, março 16, 2013

descubra as diferenças


Andrea Deschambeault







Amadeo de Souza-Cardoso

segunda-feira, março 11, 2013

what if...


Hayao MIYAZAKI

sábado, março 09, 2013

as mulheres e os dias



1.



"Bolas, tomates, colhões. T-e-s-t-í-c-u-l-o-s.
“Símbolo da fertilidade”. Expoente máximo da masculinidade.
Simétricos, com silicone.
Suportes especiais, calças decotadas, enchumaços para realçar. As bolas.
Loiros, depilados.
Fotografias por todo o lado.
Planos reclinados, pernas entreabertas. Nas revistas, na bomba de gasolina, no mecânico, nos posters na parede. No supermercado.
Mulheres com histórias, profissões. Homens com tomates.
No cinema, na televisão.
Na náite.
Que bem que cantas com os testículos pendurados.
Apresentadores que mal fecham as pernas, pivots de telejornal."

(...)

daqui
vão lá ver os links. 





2.



(...) "Toda a moral que a humanidade erigiu durante séculos, com árduo esforço de severos filósofos e clérigos, apenas visa conceder mais sofisticação e verniz à ideia de que a mulher e a sua vagina estão ao serviço do homem. Quando Deus tirou uma costela de Adão e lhe soprou para dar vida a Eva estava na verdade a criar a primeira boneca insuflável. Ok, talvez a história bíblica não seja bem assim, mas não parece que o homem a tenha entendido de outra maneira.
Do cristianismo ao islão, dos animistas aos judeus, a coisa é tão evidente que só a cumplicidade púbere e a força bruta dos homens permite que se mantenham de pé quaisquer sistemas filosóficos ou doutrinas religiosas. Uma criança educada em Marte, longe da hipocrisia terrestre, haveria de notar ao fim de cinco minutos, escangalhando-se a rir, a trapaça inerente a toda a moral machista. O que os homens fazem, com uma seriedade tão mais hilariante quanto o tamanho da barba, é viciar o jogo da lógica para terem conas submissas e não sentirem remorsos por isso." (...)





3.






4.





terça-feira, março 05, 2013

do lado de fora










(já tentei pôr em palavras, escrever ou dizer, o que ando a sentir de há uns meses para cá. 
parece-me sempre, ao ouvir-me, que é pouco, que é fútil, que é nada. 
mas se é fútil e nada e pouco, porque regressa a tristeza só porque li meia duzia de banalidades num livro folheado à toa numa livraria?
porque regressa a sensação, eu sei que parcialmente falsa, de ter vivido "tudo" do lado de fora, sempre com um vidro, uma barreira a impedir-me de...? 


tantas coisas, ao longo de tantos anos acumuladas, como água numa represa, só podem ser libertadas com alguma violência. 
o aparente lago calmo que vemos de um lado é apenas uma força adormecida. 
libertada, explode. 
resta esperar o reequilíbrio.)